Aprendendo a desaprender com as crianças

A sabedoria dos pequenos também pode ser nossa

Alex Bretas
9 min readJul 31, 2017

O universo visto pelo buraco da fechadura

Todos os dias — conta Freddy — eu o ajudo a preparar as tirinhas de massinha que ele usa para escrever. Papel e lápis não usa. Ele escreve gravando sinais na massinha. Eu não sei ler o que ele escreve. O que ele escreve não se lê com os olhos. Se lê com os dedos.

Com ele aprendi a sentir uma folha. Eu não sabia. Ele me ensinou. Fecha os olhos, me disse. Com paciência me ensinou a sentir uma folha de árvore com os dedos. Demorei a aprender porque não tinha o hábito. Agora gosto de acariciar as folhas, que os dedos escorreguem pelo lado de cima, tão liso, sentir a pelugem de baixo e os fiozinhos como veias que a folha tem dentro.

Outro dia trouxeram à escola um leão recém-nascido. Ninguém pôde tocar no bichinho. Ele foi o único que deixaram. E depois eu pedi:

— Você, que pôde tocar nele, me diz como era.

— Era quentinho — disse. — Era suave.

E pediu:

— Você, que viu o filhote, diga: como era?

E eu disse que era amarelo.

— Amarelo? Como é o amarelo, Freddy?

— Como o calor do sol — respondi. (Eduardo Galeano)

Você já ouviu aquela história de que as crianças são os verdadeiros artistas e cientistas (e projetistas e inventores) entre nós? Ou a história que te contaram foi a da “tábula rasa”, em que elas são como superfícies vazias onde despejamos todo nosso requintado conhecimento? Se você, assim como eu, está mais alinhado à primeira opção, este texto vai te deixar feliz. Caso você esteja do outro lado, pode ser que o que eu diga aqui te faça repensar sua imagem a respeito dos mais novos — e também de nós, crianças-grandes.

Por tempo demais, a humanidade achou que deveria ensinar as crianças. Fazê-las conhecerem o mundo, mas do jeito certo (como se elas não fossem curiosas o bastante para conhecer o mundo por si mesmas desde bebezinhas). Pois eu digo que devemos deixá-las nos ensinarem suas maneiras profundas e instigantes de enxergar a realidade. Assim como na história que Galeano nos conta, podemos aprender muito com elas, basta estarmos abertos para sentir as folhas.

Os pontos a seguir dão um gostinho de como as crianças podem nos ajudar a ver o universo pelo buraco da fechadura.

Crianças fazem ótimas perguntas

Uma das coisas que se descobre ouvindo as conversas das crianças é que as questões que elas propõem a si mesmas são sempre grandes questões. Elas não perguntam: “Por que a água sai da torneira?” Preferem: “De onde veio o universo?”

A observação de John Holt, escritor norte-americano e ativista da desescolarização, é bastante interessante. Mas não é preciso ser educador em tempo integral para perceber como as perguntas de uma criança são geniais: basta conviver, ainda que por poucos instantes, com uma. Ao mesmo tempo em que brilham, as grandes questões dos mais novos tendem a ser encaradas pelos adultos como ingênuas, incômodas ou simplesmente sem sentido. Talvez seja porque muita luz ofusca. Se perdemos a possibilidade de nos perguntarmos “De onde veio o universo?” em algum lugar pelo estreito caminho de nossas vidas, é ruim ver o outro fazendo isso. Ainda que seja um outro de apenas 6 anos.

O projeto School in the Cloud, do indiano Sugata Mitra, famoso por propor iniciativas que incentivam crianças a aprenderem sozinhas em grupo apenas com um computador, parece apostar alto em boas perguntas. Vejamos algumas que aparecem no site do projeto:

  • O que significa ser estranho?
  • O quão longe você vê?
  • Como a música foi inventada?
  • Como um e-mail viaja de um dispositivo a outro?
  • Por que os números são infinitos?
  • Por que não existem muitos alimentos azuis?
  • Se uma árvore cai em uma floresta e ninguém está por perto para ouvir, ela fez barulho?

Todas essas perguntas foram formuladas por educadores que não se contentaram em virar adultos mornos. No School in the Cloud, o professor apresenta uma questão e os alunos, organizados em pequenos grupos e tendo acesso à internet, discutem sobre ela com o mínimo de intervenção. Embora muito relevante, o projeto não parece dar tanto espaço para as questões que vêm das crianças. Navegando pelo banco de dados de perguntas criativas do site, encontrei uma, de autoria de Sarah Cossom, assim: “Não é melhor que os estudantes encontrem suas próprias grandes perguntas?” Queria muito ter sido um mosquitinho na sala para ver como os alunos abordariam essa questão. Ainda que perguntas vindas dos adultos possam ser importantes no processo de aprendizagem, é preciso confiar na incrível capacidade das crianças em nos surpreender.

(uma possibilidade interessante seria fazer um School in the Cloud focado não nas respostas, mas na geração de mais perguntas em torno daquela que foi mostrada inicialmente…)

Até porque, dá uma olhada em algumas perguntas feitas por crianças que encontrei no livro Aprendendo o tempo todo, do John Holt:

  • Se havia um buraco sob nossa casa, por que ela não caiu até chegar ao outro lado do mundo?
  • Por que não se pode fazer um carro movido a hidrogênio?
  • Como os gatos sabem que são gatos se eles só comem e dormem e não estão nem aí?

Crianças são biologicamente ávidas pelo conhecimento

Agora, esse desejo, essa necessidade de compreender o mundo e de ser capaz de fazer coisas nele — as coisas que gente grande faz — é tão forte que podemos, sem risco de erro, chamá-lo de biológico. É tão forte como a necessidade de alimento, de calor, de apoio, de conforto, de sono, de amor. De fato, penso que se trata de um desejo ainda mais forte do que todos estes. (John Holt)

A curiosidade é (isso se as escolas deixarem que seja) o derradeiro impulso humano por aprender. No livro Doutorado informal, elaborei que ela é “a ponte entre o conhecido dentro da gente e o desconhecido fora de nós”. Ou seja: a curiosidade é, sempre, via de acesso a novos territórios.

As perguntas intrigantes que as crianças fazem são a matéria-prima que elas utilizam para construir essas pontes, isso quando já conseguem se expressar através de palavras. Antes disso, sua curiosidade materializa-se em cenas como o dedo na tomada, a ousada expedição pelos diferentes “chãos” da casa, as brincadeiras espontâneas que surgem com crianças “estranhas” no parque (lembremos da sábia pergunta: “o que significa ser estranho?”), dentre inúmeros outros episódios comuns no universo infantil.

Ao longo dos anos, notei que a criança que aprende rapidamente é aventureira. Está sempre pronta a correr riscos. Aproxima-se da vida de braços abertos. Quer abraçar tudo. Conserva o desejo, presente nas crianças pequenas, de extrair sentido das coisas. Não está preocupada com ocultar sua inteligência ou com proteger-se. Está sempre pronta a expor-se à frustração e ao fracasso. Tem uma certa autoconfiança. (John Holt)

Em outras palavras, certas crianças são cara de pau, no melhor sentido da expressão. Como tolher esse espírito explorador presente nas crianças? Com boas doses de respostas a perguntas que ela nem se fez, com muito “respeito aos mais velhos” que se confunde com puro autoritarismo e com altas cargas de disciplina imposta, isto é, aquele tipo de disciplina que não parte de uma motivação própria, e sim dos motivos do outro — o professor, a escola, o Estado, a cultura dominante.

Como incentivar? E mais: como resgatar esse espírito em nós, adultos? Curiosidade precisa de terreno fértil para se lambuzar. Também precisa de pessoas que acreditem nela (nada de cortar/julgar as fantasias, as imaginações, as criações poéticas, as invenções malucas, as perguntas que ninguém jamais fez). E, por fim, a curiosidade precisa de tempo para florescer e para crescer como aptidão. Há alguns anos, escrevi: “é como se o processo de aprendizagem fosse um novelo que se desenrola a partir da nossa habilidade em seguir o fio de nossas curiosidades”. Sigo acreditando firmemente nisso.

Crianças são pesquisadoras inatas

As crianças nascem apaixonadamente ansiosas por compreender tanto quando puderem as coisas ao seu redor. O processo pelo qual elas transformam experiência em conhecimento é exatamente igual, ponto a ponto, ao processo pelo qual aqueles que chamamos de cientistas produzem o conhecimento científico. (John Holt)

Observação. Pergunta. Hipótese. Teste. Resultado. Novas hipóteses/teorias. Crianças fazem isso o tempo todo, com praticamente tudo que as rodeia. Elas frequentemente fazem a mesma pergunta para várias pessoas com o intuito de colher perspectivas distintas, ou mesmo de descobrir “a verdade”. Seus entendimentos sobre a vida e o mundo modificam-se a todo momento — um verdadeiro falsificacionismo popperiano.

Além disso, geralmente as investigações dos pequenos iniciam-se pelo agir. Só depois é que há o processamento emocional (que se dá pela interação) e a elaboração de conceitos. Quando uma mãe grita desesperada porque seu filho está subindo na grade da varanda do apartamento, é disso que se trata: de um aprendizado que começa pela ação, pela experimentação. Elas parecem ter realmente internalizado uma das máximas de Frei Betto, “a cabeça pensa onde os pés pisam”. Sim, um bocado de teoria é muito saudável, mas cá entre nós, somente quando requisitado. Quando entra sem ser convidada, a teoria atrapalha, pois é matéria em decomposição. As crianças são mestres em construir conhecimento vivo.

Outra coisa: investigar cientificamente o mundo é apenas uma das possibilidades de se lê-lo. Achar que a ciência é a única lente apropriada, ou mesmo pensar que o científico é superior à arte, à religião, à filosofia ou a qualquer outra forma de se construir sentido é típico de adultos hegemônicos. Mia Couto, premiado escritor moçambicano, disse uma vez em uma entrevista algo que eu adoro:

As crianças trazem uma espécie de tentação de encantamento, quando olham para uma nuvem, elas querem saber: como essa nuvem poderia ser uma história? Como essa nuvem poderia ser um ser encantado? E se lhes fizermos essas perguntas, elas vão dizer as coisas mais extraordinárias. Nós temos a tendência de corrigir e dizer: “não, a nuvem não é isso, a nuvem é vapor d’água etc.”. Não tem graça nenhuma, é uma coisa estéril. É óbvio que também é preciso dizer isso, mas como é que nós permitimos que as crianças, que poderiam ser o lado mais forte do reencantamento do mundo, não fiquem formatadas?

À pergunta de Mia Couto eu adiciono outra: o que nós adultos poderíamos parar de fazer para nos desformatarmos? Tenho para mim que é mais sobre não fazer do que fazer, mesmo. É mais sobre deixar ir, para então deixar vir. Desaprendendo o que não serve à vida é que, talvez, nos tornaremos os grandes artistas, cientistas, projetistas e inventores que este mundo está precisando.

Para continuar a desformatação

Aqui vai uma listinha de leituras recomendadas caso você queira aprender a desaprender mais um pouco:

  • Aprendendo o tempo todo (John Holt) — o livro que John Holt não chegou a terminar, mas que foi publicado postumamente é um bom compêndio de suas ideias e ideais para a educação. Sua vida foi dedicada à aprendizagem e, com o tempo, Holt foi percebendo que sua tarefa não era mais ensinar, e sim aprender com as crianças.
  • School in the Cloud — projeto idealizado por Sugata Mitra que propõe uma transformação feroz no cotidiano das salas de aula. Mesmo acreditando que a iniciativa deveria ser mais permeável às perguntas feitas pelas crianças, o School in the Cloud merece ser conhecido por ser um exemplo prático do que pode ser feito para mudar a paisagem das escolas.
  • Biological Foundations for Self-Directed Education (Peter Gray) — texto curto e bastante elucidativo do especialista em aprendizagem livre Peter Gray que sumariza os quatro motores da educação autodirigida das crianças: curiosidade, brincadeira, sociabilidade e planejamento.
  • Manifesto 15 — uma declaração que sintetiza, em 15 pontos, como a aprendizagem deve ser encarada no novo milênio. Se tiver alguma dúvida sobre o documento ou quiser se envolver de alguma forma, fale com meu amigo Varlei Xavier, que acabou de se tornar um dos embaixadores do Manifesto ;)
  • Doutorado informal — jabá vale? Alguns dos trechos que utilizei aqui foram retirados deste livro, que publiquei no ano passado e está disponível para download gratuito. Faço uma expedição por 6 experiências educacionais inspiradoras, converso por carta com 6 pensadores e fazedores da educação que me influenciaram e apresento a abordagem do doutorado informal, um percurso de aprendizagem autônomo que qualquer pessoa pode fazer.

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Alex Bretas

Alex Bretas é escritor, palestrante e fundador do Mol, a maior comunidade de aprendizagem autodirigida do Brasil. Saiba mais em www.alexbretas.com.