Bullying educa?
Ouvi essa pergunta alguns dias atrás. Minha primeira reação foi exaltada: “isso é ridículo, é claro que não”. Mas talvez uma primeira forma de compreender o bullying como educativo seja refletindo sobre ele.
Eu sofri bullying na escola e fora dela. Eu era branquelo demais, gordo demais, “inteligente” demais, comentarista das aulas demais, dentuço demais, sardento demais, peludo demais, inadequado demais. E é claro que todos esses julgamentos e manifestações de ódio, das mais sutis às mais escancaradas, faziam com que eu presumisse que havia outras mais que não me diziam. Se você também sofreu com isso, imagino que deva se lembrar de como o bullying faz com que comecemos a suspeitar de nós mesmos, a julgar a nós mesmos, a tentar agradar a todos a todo momento como uma tentativa de pertencer.
Sem pretender qualquer precisão conceitual, eu vejo o bullying como uma discriminação. Quando alguém sistematicamente chama o outro de feio, gordo, com peitinhos, ombros largos demais, pé grande, voz fina, viado ou sapatão, cabelo ruim, favelado, o que está acontecendo é uma rejeição. Para usar a definição de amor de Humberto Maturana, não há aceitação do outro como um ser legítimo na convivência.
Mas são só crianças, você poderia me dizer. São só adolescentes, é natural que seja assim. É a maneira como eles se expressam, meio torta mesmo.
Não. Não é natural. É cultural, e precisa mudar.
No que se refere a muitos tipos de discriminação, nós já avançamos muito. Se alguém não aceita e ofende o outro por causa de sua cor de pele, gênero ou orientação sexual, a tendência de alguém razoável e minimamente progressista é não tolerar. Devemos isso às lutas incansáveis dos movimentos negro e feminista. Mas, por algum motivo, o bullying, que é uma discriminação mais personalizada e direcionada, é persistente como uma erva daninha.
Por que não aceitamos mais a discriminação racial e de gênero, mas continuamos tolerando o bullying?
Se alguém me dá um soco, depois da dor eu posso aprender com isso. Posso aprender a desviar ou a me defender melhor, por exemplo. Mas eu não saio por aí dando socos nas pessoas para que elas aprendam coisas. Nem tolero que se perpetue uma cultura de socos com fins “educativos”. Aprendemos com o bullying? Alguns de nós sim. Mas da pior forma.
Não estou dizendo que precisamos colocar as crianças e os adolescentes em uma redoma de vidro e protegê-los de todo o mal. De vez em quando socos acontecem, na vida adulta também é assim. É importante aprendermos a perder, enxergarmos a crueldade, sentirmos a dor das nossas feridas. É até possível entender isso como o que sobrou do rituais de entrada no reino dos adultos que muitas comunidades ancestrais tinham.
Ainda assim, a cultura escolar tradicional contribui muito para que esses restos de rituais de entrada se convertam em torturas psicológicas, e isso tem consequências perversas que nos acompanham por toda a vida. Yaacov Hecht, pioneiro da educação democrática em Israel, descobriu que escolas cujo currículo é livre são menos violentas do que aquelas com currículo obrigatório, mesmo quando adotam processos de gestão democráticos. Parece haver uma relação entre criar o próprio caminho de aprendizagem, dar asas ao desejo pela descoberta, e ser menos violento com o outro. É como se os estudantes abrissem mão da violência porque a cultura na qual estão imersos agora lhes respeita, quer saber sobre eles, enxerga sua legitimidade. Soa óbvio, mas não é. Se fosse, nossas escolas seriam diferentes.
A escolarização como a conhecemos é competitiva e funciona a partir da comparação. Os alunos sabem que o que se espera deles é que tirem boas notas e sejam “comportados”, isto é, obedientes. Para os que têm mais dificuldade em fazer isso, ou seja, subir no ranking de reconhecimento dos adultos, uma estratégia é tentar rebaixar os outros. Eles subvertem o código moral da escola inaugurando uma subcultura em que ser bom aluno torna-se ruim e ser da “turma do fundão” é valorizado. É uma tentativa de ser aceito, pertencer e ser reconhecido. E essa tentativa só existe porque a cultura escolar oficial, criada pelos adultos, baseia-se na desconfiança, (que leva à) competição, (que leva à) comparação, (que leva à) discriminação.
Até hoje eu sinto as marcas do bullying na minha vida. Muitos gatilhos de tristeza ou irritação relacionados à imagem que tenho de mim mesmo conectam-se com o sofrimento que senti na época de escola. Eu não tinha repertório emocional para lidar com aquilo. Tenho certeza que muitos de nós — ou talvez todos nós — sentimos o mesmo.
Não podemos tolerar uma cultura geradora de discriminação. O bullying não é algo natural. Podemos até aprender com ele, mas nunca banalizá-lo.