Carta a Paul Feyerabend
Paul K. Feyerabend (1924–1994) foi um filósofo do conhecimento que se tornou conhecido por sua obra “Contra o Método” escrita em 1975, um manifesto em prol do anarquismo epistemológico.
São Paulo, 19 de abril de 2015,
Desculpe, Paul, mas devo confessar que não sei pronunciar seu sobrenome direito. Faiáraband? Feiraban? Feiaraband? Nas minhas buscas sobre você, vi diferentes pessoas dizendo seu nome de distintas maneiras. Talvez todas estejam certas, não é? Sei que você foi alguém que denunciou os absurdos do certo no singular. Para isso, utilizou a filosofia, mas não aquela banhada em ouro, e sim a singela arte de pensar e escrever sobre nossas questões essenciais. No seu caso, a respeito do conhecimento humano.
Nesta carta, quero não só lhe falar de como o seu trabalho de desconstrução da ciência me abalou, mas também do que sinto ao tomar contato com alguns episódios da sua biografia. Simbolicamente, esta foto em que você está “trabalhando” lavando pratos demoliu de forma tão explosiva algumas de minhas crenças que precisei começar por ela. Além disso, acabei por me identificar: estando de mãos ocupadas com a louça, costumo refletir bastante e, às vezes, tenho bons insights.
A epistemologia do amor
“Epistemoloque?” é o título de um ótimo artigo de Valeria Gianella sobre epistemologia para não filósofos. Trata-se de um esforço para apresentar essa estranha palavra a um público mais amplo e justificar sua importância cada vez maior nos dias de hoje. Se o conceito pudesse ser desempacotado, por mim ficaria assim:
Vamos parar e refletir um pouco sobre como estamos construindo conhecimento no mundo, não só pela ciência, mas também por meio de todas as outras formas de se conhecer. Refletir não só sobre o como, mas sobre o porquê e, especialmente, para quê. Vamos trazer todas as nossas questões sobre o conhecimento para a mesa.
Mas, qual seria o propósito disso? Paul, se você estivesse vivo, acredito que você responderia a essa pergunta de modo bem diferente do que alguns de seus colegas. Pra você, imagino que o propósito da epistemologia e, no limite, do próprio conhecimento humano seria não o progresso tecnocientífico, mas o amor.
Você se preocupava com a coexistência pacífica e horizontal entre as “formas de vida”, isto é, os diferentes modos de se construir conhecimento. Mais tarde, passou a acreditar na necessária e irrepreensível colaboração entre saberes e culturas. Este era o seu modo de priorizar a convivência amorosa entre a ciência e outras formas de conhecer. Entretanto, não se trata do amor banal, que prende e repreende, e sim do oposto disso.
Num dos artigos que encontrei sobre você, da Cristina Machado, lia-se “Feyerabend: l’enfant terrible da filosofia da ciência”. Estou só começando a estudar francês, mas consegui entender bem: você despertou a ira de muita gente! Alguns o denominaram de “o pior inimigo da ciência”, sem compreenderem direito que você não atacava a ciência em si, mas sim a sua pretensão imperialista e sua metodologia supostamente uniforme e linear. É como você disse: “as ideologias são maravilhosas quando operadas na companhia de outras ideologias. Elas tornam-se aborrecidas e dogmáticas quando seus méritos conduzem à remoção de seus adversários”.
Em meados da década de 70, você proferiu a perigosa afirmação de que “a ciência é uma religião”. Valeria Gianella, a esse respeito, escreveu que
“a partir dos princípios de (pretendida) objetividade, neutralidade e exatidão, a ciência se declarou o único saber válido, desqualificando qualquer outro através dos rótulos de superstição ou de magia. Constituiu-se como fundamento poderoso do sistema socioeconômico capitalista e tornou-se a base certa e incontestável para sustentar o processo de manipulação/exploração da natureza, com base na visão mecanicista dela (natureza) e na separação entre esta e o ser humano”.
Logo, rotular saberes como superstição ou magia e tentar coibir a sua manifestação é um tipo de postura autoritária que não ficou restrita à religião — infelizmente, o padrão dogmático se repete. O sufocamento de outras formas de se construir conhecimento já poderia ser, por si só, razão suficiente para denunciarmos e nos opormos ao salto alto da ciência, mas você, Paul, apontou-nos outro motivo.
Em sua mais célebre obra, “Contra o Método”, o que você fez foi implodir qualquer noção abstrata e acabada sobre o método científico pontuando casos na história em que cientistas importantes escapuliram aos mandamentos. Copérnico é um deles: “quando Copérnico introduziu uma nova visão do universo, ele não consultou antecessores científicos, ele consultou um louco pitagórico, Filolau. Adotou suas idéias e ele manteve-as frente a todas as regras do método científico”. Galileu, por sua vez, ao retomar a “ultrapassada” teoria de Aristóteles sobre o movimento da terra, fez avançar a ciência por meio de um regresso a uma visão na época taxada como absurda e pouco racional. Como você mesmo disse,
“mecânica e ótica devem muito aos artesãos; a medicina às parteiras e bruxas. E em nossos dias [o texto é de 1975] temos visto como a interferência do Estado pode fazer avançar a ciência: quando os comunistas chineses não se deixaram intimidar pelo julgamento de especialistas e ordenaram a volta da medicina tradicional às universidades e hospitais, houve uma gritaria em todo o mundo de que a ciência estaria em ruínas na China. Muito ao contrário ocorreu: a ciência chinesa avançou e a ocidental aprendeu com ela”.
A sua compreensão a respeito do método científico como colcha de retalhos fez muito sentido pra mim porque espelha a complexidade do mundo. Não desqualifico o valor que as metodologias de fato possuem, mas é saudável à ciência e à sociedade ter alguém que nos revele o caos. Que diga que
“os fatos, operações e resultados que constituem as ciências não têm uma estrutura comum; não há elementos que se verifiquem em todas as investigações científicas e só nelas. […] As investigações bem sucedidas não obedecem a modelos gerais; assentam ora num expediente, ora noutro; os movimentos que as fazem avançar e os modelos que definem o que deve ser considerado como avanço nem sempre são conhecidos por quem os opera. […] Uma teoria da ciência que define modelos e elementos estruturais para todas as atividades científicas e os legitima por referência à Razão ou à Racionalidade é suscetível de impressionar os leigos — mas afigura-se um instrumento excessivamente grosseiro aos que estão por dentro das coisas, ou seja, para os cientistas que se confrontam com um problema de investigação concreto”.
O que você traz é uma crítica não ao fato de se fazer ciência, mas de se fazê-la no singular. Cada ciência tem sua singularidade, seu jeito, e os conhecimentos que o discurso dominante pode taxar de absurdo hoje — a astrologia, por exemplo — podem não somente ser muito úteis amanhã, como também provavelmente já funcionam muito bem à comunidade que deles se serve. No limite,
“[…] a ciência é muito mais ‘desleixada’ e ‘irracional’ do que a sua imagem metodológica. […] A diferença entre a ciência e a metodologia, fato mais do que evidente ao longo da história, indica uma fraqueza da última, e talvez também das “leis da razão”. Porque aquilo que surge como ‘desleixo’, ‘caos’ ou ‘oportunismo’ quando referido a essas leis desempenha uma função da máxima importância no desenvolvimento dessas mesmas teorias que são consideradas partes essenciais do nosso conhecimento da natureza. Esses ‘desvios’, esses ‘erros’, são pré-condições do progresso. As ideias que hoje formam a base da ciência só existem porque existiram no passado certas coisas como o preconceito, a imaginação, a paixão; porque essas coisas se opuseram à razão; e porque tiveram a possibilidade de seguir o seu caminho”.
Paul, devemos então extinguir todo ranço de metodologia das ciências? A resposta, creio que você a compartilharia comigo, é um sonoro não! O problema está no “tem que”: no diálogo, quando uma afirmação começa com “tem que”, isso já denuncia um pressuposto, uma crença que se manifesta numa imposição. Não se trata de ser contra o método, mas a favor de uma horizontalização de todos os saberes e formas de proceder, mesmo aquelas mais distantes do nosso habitual.
É dizer: a escassez mora nos extremos e, neste caso, revela-se quando queremos fixar uma forma de pensar como a certa (escassez de possibilidades) e também quando queremos impor a destituição de todas as estruturas e métodos já estabelecidos (escassez de humildade). As metodologias disponíveis, não só no território científico como em qualquer outro, são ferramentas que guiam nosso pensamento em terras áridas. São, por isso, muito importantes. Que tal aceitarmos todas elas, quer sejam “científicas” ou não, como legítimos desenvolvimentos humanos? Trazê-las à mesa quando formos enfrentar nossa próxima questão? Ordem e caos são duas forças que precisam conviver.
Neste sentido, mais do que tolerar diferentes conhecimentos e formas de proceder, é preciso aceitá-los em sua inteireza, acolhê-los como legítimos outros. Esta é a epistemologia do amor que acredito que você, Paul, defendeu. O amor que delimito aqui é, de acordo com Humberto Maturana,
“[…] o anseio biológico que nos faz aceitar a presença do outro ao nosso lado sem razão, nos devolve à socialização e muda a referência de nossas racionalizações. A aceitação do outro sem exigências é o inimigo da tirania e do abuso, porque abre um espaço para a cooperação. O amor é o inimigo da apropriação.”
Essa epistemologia assume então uma característica pré-racional, por ser baseada, antes, num domínio emocional:
“o amor é o fenômeno biológico que nos permite escapar da alienação anti-social criada por nós através de nossas racionalizações. É através da razão que justificamos a tirania, a destruição da natureza ou o abuso sobre outros seres humanos na defesa de nossas propriedades materiais ou ideológicas”.
Não é minha tarefa, na estreiteza desta carta, criar um manifesto da epistemologia do amor. Só quis explicitá-la no contorno dos diálogos que você me forneceu por meio de suas ácidas e irreverentes reflexões sobre o conhecimento.
Do exército alemão à defesa das minorias
Paul, muito novo você foi recrutado pelo exército alemão em pleno nazismo. A Áustria havia sido unificada à Alemanha e sua atitude nesse período me lembrou a absurda ausência de sentido de personagens como Meursault, de Albert Camus. Você queria apenas ler os seus livros em paz, mas em dois episódios o seu “herói lírico” foi despertado — no primeiro, você ganhou uma Cruz de Ferro, e no segundo, balas de fuzil que lhe deixaram aleijado, mas que finalmente lhe tiraram da guerra. Antes disso, você foi designado para comandar alguns grupos de soldados, e foi então que seus questionamentos sobre o ensino começaram:
“Lá estava eu, um rato de biblioteca, sem experiência, as insígnias de autoridade nos ombros, sendo confrontado com um bando de céticos peritos. O mesmo se deu comigo de novo, vinte anos depois, quando eu devia lecionar para índios, negros e hispânicos que haviam ingressado na universidade como parte dos programas educacionais de Lyndon Johnson. Quem era eu para dizer a estas pessoas o que pensar? E quem era eu agora para dar ordens a homens que estavam na guerra há anos?”
Tomando contato com sua trajetória acadêmica, fiquei admirado com o fato de um ex-tenente nazista questionar-se seriamente sobre como lidar com a diversidade. Na universidade de Berkeley, nos Estados Unidos — por onde você foi professor durante mais de vinte anos — sua postura buscava acolher e explicitar as tensões culturais que explodiam na década de 60 e que, de forma natural, eram trazidas pelos estudantes.
“Via-se cada vez mais rostos negros em minhas aulas (num percentual bem maior do que no campus hoje) e eu estava sempre confuso. Deveria continuar alimentando-os com os manjares intelectuais que eram parte da cultura branca? […] eu me sentia ignorante e deslocado”.
Frequentemente, você fazia com que os alunos não apenas assumissem o papel de professores, como também os estimulava a discursar sobre suas questões de vida mais essenciais:
“Aceitando um convite meu, estudantes vietnamitas explicaram a história de seu país e as razões para a resistência. Um grupo de gays descreveu como se sentiam vivendo como minoria num mundo de heterossexuais ignorantes e presunçosos”.
Na verdade, suas críticas ao elitismo e ao autoritarismo não ficaram restritas aos seus livros, tampouco à epistemologia. Uma das histórias mais interessantes de seus tempos como acadêmico narra o experimento que sua amiga Joan McKenna realizou ao conferir uma palestra a estudantes:
“Tendo sido apresentada como conferencista convidada, ela falou por cerca de vinte minutos; então parou e pediu que fizessem perguntas. Suas respostas eram desagradáveis, improcedentes e autoritárias. Ninguém interveio. Pelo contrário, as pessoas perto das vítimas afastavam-se um pouco, como se quisessem dizer que não tinham nada a ver com aquele fracasso. Então Joan revelou a farsa e seu propósito. ‘Vejam o que estão fazendo!’, exclamou ela. ‘Eu dou respostas ridículas e autoritárias e vocês não apenas as engolem como tratam os únicos alunos suficientemente corajosos para resistir como fracassados. Não admira que um professor possa sair impune com qualquer coisa!”
Logo após terem assumido que se tratava de uma encenação, vocês iniciaram uma conversa com os alunos no sentido de levantar possibilidades do que fazer quando se está diante de uma atitude autoritária. Fiquei com muita vontade de um dia refazer esse experimento! Paul, acredito que casos como este ilustram bem o seu espírito travesso — e também ajudam a explicar porque você foi tão criticado.
Como disse Mário Bunge, um desses filósofos que o censurou, você andava feito cigano tanto pelo mapa do mundo quanto pelo mapa da cultura. Ciência e filosofia conviviam dentro de você com o teatro e o canto, o qual também ocorre de ser uma de minhas paixões. Cantar é uma bela metáfora para a aprendizagem — cada um vem ao mundo com um timbre de voz único, que vai se moldando a partir de hábitos e navegações culturais singulares. Temos uma cor e um naipe vocal que podem ser desenvolvidos, mas que encontram num determinado conjunto de notas a sua região mais confortável e brilhante de expressão. De forma semelhante se dá o conhecer humano: partindo de configurações biológicas e culturais únicas, construímos conhecimento por meio dos jeitos que nos soam mais brilhantes e confortáveis — ou seja, que fazem sentido pra nós.
A história da humanidade é a história das pessoas trocando e construindo saberes nos formatos que mais lhes fazem sentido a cada momento. Yoga, astrologia, surrealismo, feminismo, marcenaria, medicina chinesa e mitologia guarani são somente alguns exemplos de coleções que merecem habitar o mesmo território dos conhecimentos tidos como científicos. Por mais que você, Paul, tenha dito que logo esquecera tudo aquilo que passou em seus três anos de guerra, talvez isso tenha servido para pavimentar sua trajetória oposta. É como você escreveu, pouco antes de partir, na última linha de sua autobiografia: “isto é o que eu gostaria que acontecesse, a sobrevivência não intelectual, mas do amor”.
Obrigado,
Alex.
Referências
Feyerabend, Paul K. “Matando o tempo: uma autobiografia”. Tradução de Raul Fiker — São Paulo: Fundação Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
Feyerabend, Paul K. “Contra o Método”. Edição revista publicada pela Verso, 1988. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D’água, 1993.
Maturana, Humberto. “Formação Humana e Capacitação”. Disponível em: http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_38_8_5_1_2.php
Machado, Cristina. A relação de poder entre astrologia e ciência: uma leitura de Paul Feyerabend. Disponível em: http://www.constelar.com.br/constelar/109_julho07/feyerabend1.php
Bunge, Mário. Tradução do capítulo sobre Paul Feyerabend extraído de seu livro “Cápsulas”. Disponível em: http://universoracionalista.org/sobre-thomas-s-kuhn-e-paul-feyerabend/
Feyerabend, Paul. Como defender a sociedade contra a ciência. Conferência proferida em 1975 traduzida por Paulo L. Durigan. Disponível em: http://www.paulo.durigan.com.br/content/defender-sociedade-diante-ciencia-feyerabend
Cartas
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