Como hackear a disciplina?
Ulisses e sua tripulação estavam prestes a navegar pela ilha de Capri, um lugar rochoso e cheio de sereias. Eles voltavam da guerra ansiosos para chegar em casa e reencontrar suas famílias. O canto das sereias, sabia Ulisses, seduzia os homens e os fazia quererem se jogar na água desesperadamente. Ele, então, tapou os ouvidos de seus marujos com cera e pediu para ser amarrado ao mastro do barco. Ao rodear a ilha, Ulisses gritava alucinado pedindo para ser desamarrado, mas o restante da tripulação não o escutava, assim como não ouviam também o canto das sereias. Foi assim que eles conseguiram resistir à tentação e passar ilesos pela ilha.
Essa passagem da Odisséia, de Homero, livro escrito há mais de 2.000 anos, nos ensina várias coisas. Dentre elas, como podemos hackear a disciplina.
Disciplina pode ser desenvolvida. Não é algo que nascemos com ou sem. É muito comum ouvirmos as pessoas falarem: “fulano é muito disciplinado” ou “beltrano vai se dar mal na vida, porque não tem nenhuma disciplina”. A questão é que a cultura opressora em que vivemos, com destaque para a escola tradicional, nos convenceu de que disciplina é uma imposição do outro sobre mim, e não um poder que eu mesmo sou capaz de cultivar. Ou seja: disciplina, para muitos de nós, virou sinônimo de obediência.
A disciplina pode ser de dois tipos: a da orquestra e a do exército. Normalmente a disciplina das escolas e das famílias é deste segundo tipo, o que leva ao ódio. A disciplina da orquestra caracteriza-se por conjugar todos num mesmo espírito, e por permitir que cada um se desenvolva ao máximo. Já a disciplina do quartel precisa lidar com escravos, incapazes de apreciar a liberdade, inferiores, masoquistas. (Helena Singer)
Como muitos dos lugares que habitamos, inclusive os espaços de trabalho, assemelham-se mais a exércitos do que a orquestras, viramos escravos quase sem perceber. Se existe alguém me cobrando o tempo todo, especialmente para realizar algo que eu mesmo não considero importante, a musculatura da autodisciplina vai ficando fraca, pois não está sendo utilizada.
Mas voltemos à Odisséia. Como desenvolver autodisciplina? Em primeiro lugar, vale ter em mente a máxima:
Autodisciplina é ser livre… de você mesmo.
Ou pelo menos de uma parte de você mesmo que te atrapalha a chegar aonde você quer.
Ulisses sabia de sua fragilidade. Ele não tentou escondê-la, pelo contrário, a reconheceu e lidou com ela. Ele sabia de suas fraquezas e sabia também o que era mais essencial para ele naquele momento: chegar em casa. Aqui está, então, a primeira recomendação para quem quer desenvolver disciplina: autoconhecimento.
A partir disso, ele criou uma armadilha para si próprio, uma armadilha que o protegeu do desvio mortal que seria não realizar seu propósito.
Podemos usar a mesma estratégia de Ulisses em nossos projetos pelo menos de duas formas: comprometimento público e comprometimento financeiro. Por que pessoas que realizam projetos de financiamento coletivo geralmente têm uma altíssima motivação para entregar o que prometeram após a campanha ser bem-sucedida? Porque há um compromisso público (apoiadores que acompanham e, de certo modo, “monitoram” o que será feito) e um compromisso financeiro (a grana de quem apoiou) em jogo. Quando outras pessoas demonstram confiança na gente e, principalmente, quando tem dinheiro envolvido, nossa motivação é outra.
Quer ver outro exemplo? O site Stickk permite que pessoas cadastrem objetivos e sejam incentivadas a alcançá-los por meio de armadilhas como monitoramento externo e até mesmo perda de dinheiro. Em 2016, Blake Boles, escritor e empreendedor na área da educação, utilizou o Stickk para ajudá-lo a criar um site sobre aprendizagem autodirigida, uma meta que ele adiava há tempos. Caso ele não entregasse, o site iria debitar 1.000 dólares de seu cartão de crédito e enviar diretamente para o comitê de campanha de Donald Trump. Isso era a última coisa que ele queria fazer.
Como não criar disciplina com uma armadilha dessas?
Outro hack interessante é o accountability buddy, que pode ser traduzido como amigo ou amiga auditora. Essa relação se verifica quando alguém apoia outra pessoa na realização do que mais importa por meio de reuniões de acompanhamento periódicas (geralmente semanais). É tão simples quanto convidar alguém conhecido para se encontrar regularmente e, nos encontros, compartilhar com essa pessoa seus compromissos durante o período. Durante a conversa, a dupla verifica se as tarefas planejadas no último encontro foram cumpridas. O mais interessante é quando a relação vira uma troca e ambas as pessoas se apoiam mutuamente.
Seja qual for a tática de comprometimento que você escolher, será preciso refletir sobre o que será feito. Algumas pessoas gostam de pensar em termos de objetivos, e certamente eles são importantes (o Blake, por exemplo, fixou um objetivo claro, criou sua armadilha e funcionou). Mas pode ser útil também pensar a partir de sistemas ou rotinas. Alguns exemplos de rotinas:
- Publicar um post no blog diariamente
- Meditar 5 minutos por dia antes do café da manhã
- Fazer um desenho por dia durante um mês e publicar no Instagram
Quando ouvimos a palavra rotina, nossa tendência é imaginar uma coisa chata. Isso ocorre porque nós fomos acostumados a seguir rotinas impostas, e não a criar as nossas próprias. É a disciplina convertida em obediência.
Em comparação com objetivos, estruturar rotinas é bom por uma série de razões:
- Objetivos podem nos deixar cegos em relação às oportunidades que aparecem, ao passo que rotinas são mais flexíveis
- As rotinas você é quem controla, e objetivos às vezes envolvem coisas que estão fora do nosso controle
- Rotinas geram ritmo, e ritmo nos ajuda a sustentar novos hábitos
- Rotinas liberam espaço mental, já que você não precisa ficar decidindo toda hora o que fazer
Em 2015, escrevi um livro a partir de uma rotina e de uma armadilha vinculada a ela. Meu compromisso era publicar três posts por semana no blog, às segundas, quartas e sextas. Como uma forma de me ajudar a cumprir essa missão, criei um financiamento coletivo recorrente, uma modalidade de crowdfunding em que apoiadores contribuem mensalmente com projetos em que acreditam. Obviamente a grana era uma ajuda importante, mas a confiança e o monitoramento de quem apoiava eram essenciais para me fazer sentar a bunda na cadeira e escrever. Depois de quase 4 meses nessa rotina, completei 50 posts e decidi reunir tudo em uma publicação.
É incrível o poder que emerge quando nos permitimos ser livres de nós mesmos. Para despertá-lo, precisamos nos amarrar ao mastro de vez em quando.
Para saber mais
Why Having a System is Essential to Increasing Your Creative Output. Srinivas Rao. Disponível em: https://medium.com/the-mission/why-having-a-system-is-essential-to-increasing-your-creative-output-12feae92de66.
As Sereias e a Odisséia — Como resistir ao “Canto da Sereia” conforme Homero. Marcus Azen. Disponível em: http://eradaincerteza.blogspot.com.br/2012/11/as-sereias-na-odisseia-de-homero-como.html.
Self-Discipline is Freedom… From Yourself. Why It’s Important. Freedom in Thought. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ky7ARprxpNM.