Comunidade: uma necessidade humana atemporal
“Ser é ser percebido” (George Berkeley)
Os avanços da industrialização no século XIX deixaram rastros que poucos de nós conseguimos imaginar. Além das transformações econômicas e das mudanças na jornada de trabalho, outras modificações sociais e culturais ocorreram. Cidades tornaram-se centros industriais e assim atraíram rapidamente muitas pessoas vindas de outros lugares. As famílias recém-chegadas, além de terem que se acostumar com uma rotina distinta da vida rural que conheciam, haviam abandonado suas casas, igrejas e comunidades. O tecido social se rompeu e, de repente, a condição de operário era a única que importava.
Os empregadores ficaram preocupados com esse rompimento. Não porque a falta de vínculos comunitários prejudicava as pessoas, mas por uma razão bem mais utilitarista: controle. As classes trabalhadoras eram vistas como especialmente suscetíveis a atos imorais e condenáveis como o vício em álcool, por exemplo. Faltavam-lhes os bons costumes da elite. As empresas começaram então a construir igrejas de denominação própria e também a financiar grupos religiosos em várias localidades. A religião foi convertida em estratégia para produzir trabalhadores mais domesticados e produtivos. Algumas indústrias deram um passo a mais e estruturaram planos de pensão e serviços médicos. A vida comunitária começava pouco a pouco a ser resgatada, mas agora sob a tutela dos empresários e das afiliações religiosas que eles financiavam.
Para muitos de nós, o trabalho hoje é radicalmente diferente daquele que ocorria no século XIX. Em vez de ficar em pé ao lado da linha de produção, precisamos usar nossas habilidades intelectuais e emocionais para criar coisas novas. A cultura da repetição e do controle deixou de ser a regra. No entanto, as necessidades humanas de pertencimento e propósito permanecem tão atuais quanto eram 150 anos atrás. E instituições tradicionais como a religião parecem estar perdendo a capacidade de provê-las, especialmente para as gerações mais jovens.
Em 2014, 35% dos jovens adultos nos Estados Unidos declararam não ter uma religião. A geração dos Millennials é hoje a mais secular da história do país. Na Noruega e na Grã-Bretanha existem mais ateus e agnósticos do que religiosos. E, na América Latina, a taxa de pessoas sem religião atingiu seu ápice nos últimos anos, embora ainda não seja tão alta. Ainda que por razões diferentes daquelas da primeira onda de industrialização dois séculos atrás, estamos abandonando nossas igrejas rumo a uma nova configuração social.
Além da crescente secularização, também estamos cada vez mais urbanos. Um relatório da ONU de 2018 aponta que 68% da população mundial estará nas cidades em 2050, um crescimento de 13% em relação ao dado mais atual. A cultura individualista assola os centros urbanos. Especialmente nas metrópoles, é difícil encontrar um amigo para tomar um café ou o afilhado que não vemos há tanto tempo. E se passamos a maior parte do dia trabalhando, onde vamos buscar comunidade?
O trabalho é uma das principais fontes de pertencimento e sentido na vida de muitas pessoas hoje. Queremos que nossa atividade profissional contribua para tornar o mundo um lugar melhor, trabalhar com pessoas das quais gostamos, integrar vida pessoal e trabalho e viver de maneira autêntica. Um estudo da Gallup de 2016 aponta que a maioria dos Millennials considera o bem-estar um componente muito importante no trabalho. Bem-estar no contexto do estudo é o resultado da soma de cinco elementos: propósito, relacionamentos, finanças, comunidade e saúde. Se a organização não promove esses fatores, ficamos insatisfeitos e começamos a planejar nosso próximo trabalho.
Como as organizações podem responder a isso? Seria anacrônico construir igrejas. Contudo, mais uma vez a interseção entre trabalho e comunidade está em pauta. Isso representa, ao mesmo tempo, uma oportunidade e um desafio.
Comunidade é um atributo essencial da espécie humana. Segundo o articulador comunitário suíço Fabian Pfortmüller, fora os nossos círculos mais íntimos, muitos de nós não temos espaços onde nos sentimos verdadeiramente vistos e escutados. E para alguns, as pessoas mais próximas talvez sejam as que mais julgam e silenciam. Segundo Pfortmüller,
há uma ligação direta entre se sentir visto e se sentir conectado. Se eu não me sinto reconhecido (e, em alguma medida, compreendido) pelo que sou, eu irei me sentir desconectado, sozinho.
Essa qualidade de se sentir reconhecido pelo que se é seria não apenas um efeito colateral da comunidade, mas sua própria razão de ser, argumenta o autor. Citando o terapeuta Michael Schreiner, Pfortmüller continua:
A maioria de nós está desesperado querendo ser compreendido, querendo ter aquela sensação de isolamento estilhaçada por pessoas que realmente nos entendem em um nível mais profundo. O medo inconsciente que parece estar nos espreitando no fundo é que, se nós não formos compreendidos, será como se nunca tivéssemos existido.
O espaço que proporciona ao ser humano as melhores chances de ser visto, compreendido, reconhecido e escutado é a comunidade. Ela é uma necessidade ontológica. Sendo vistos, ganhamos motivação para responder à altura dos desafios que enfrentamos como sociedade. Assim, as comunidades também são ferramentas poderosas de transformação social. “Não há poder comparável ao poder de uma comunidade que conversa consigo mesma sobre o que quer”, afirmou a escritora e consultora norte-americana Margaret Wheatley. O potencial que temos como espécie deriva do fato de conseguirmos pensar junto e fazer junto. Todas as engenhosidades que desenvolvemos ao longo do tempo só foram possíveis porque muitas pessoas trabalharam de maneira articulada em prol de objetivos comuns. O conhecimento e a capacidade de realização que alguém possui sozinho é apenas uma ínfima parte do conhecimento e da capacidade de realização da coletividade.
Apesar disso, vivemos uma crise de comunidade. A busca pela liberdade e pelo sucesso individual a todo custo afeta a vivência comunitária, e essa narrativa liberal é predominante hoje. Precisamos reaprender a cultivar comunidade em um contexto fluido e digital. Ao mesmo tempo que muitos de nós nos sentimos solitários e incompreendidos, o mundo digital amplia de maneira inédita nossa conectividade. Temos acesso a uma infinidade de pessoas, conteúdos e recursos, assistimos às histórias uns dos outros nas mídias sociais, mas sentimos falta de empatia. Sentimos falta daquela sensação de estarmos em um mesmo barco rumo a algum lugar promissor. Nesse cenário paradoxal, como repensar a ideia de comunidade?
Segundo o professor Rogério da Costa, por muito tempo a definição de comunidade foi associada a laços de solidariedade, vizinhança ou territorialidade comum e parentesco. No entanto, a partir das tecnologias digitais, o território comum se expande abruptamente. “Estamos em rede, interconectados com um número cada vez maior de pontos e com uma freqüência que só faz crescer”, afirma o autor. Longe de significar a falência da ideia de comunidade, esse novo contexto aponta para uma reconceitualização do termo.
Nos anos 90, a noção de capital social foi introduzida para apoiar as análises sobre o fenômeno das redes sociais. Capital social, segundo Rogério da Costa, quer dizer
a capacidade de interação dos indivíduos, seu potencial para interagir com os que estão a sua volta, com seus parentes, amigos, colegas de trabalho, mas também com os que estão distantes e que podem ser acessados remotamente. Capital social significaria aqui a capacidade de os indivíduos produzirem suas próprias redes, suas comunidades pessoais.
A capacidade de produzir suas próprias redes — navegar por elas e acessar o que desejamos ou necessitamos a cada momento — é um dos componentes da skill de comunidade que estamos tratando aqui, porém não é o único. Em um mundo distribuído, a posse de um recurso é menos importante do que o acesso a ele. “Eu guardo conhecimento nos meus amigos”, disse a estudiosa de redes Karen Stephenson. Ainda que pareça óbvio, tiramos um peso das costas quando conseguimos incorporar essa frase. Você não é apenas sua individualidade, você é também quem você conhece, e quem essas pessoas conhecem, e assim por diante. A distância entre as pessoas no mundo está diminuindo drasticamente: depois da famosa teoria dos 6 graus de separação proposta pelo autor húngaro Frigyes Karinthy, já se fala em 3,5 graus, conforme pesquisa realizada pelo Facebook em 2016 com sua base de 1,6 bilhões de usuários. Isso significa que hoje podemos alcançar qualquer pessoa no planeta por meio de no máximo quatro navegações na nossa rede.
As tecnologias digitais ampliaram tanto nosso horizonte de possibilidades que o mundo ficou pequeno. Citando Pierre Lévy, Costa afirma que as chamadas comunidades virtuais são uma “nova forma de se fazer sociedade” menos baseada em laços duradouros e mais calcada em cooperação e trocas rápidas. Ainda que alguns vínculos fortes permaneçam em nossas vidas — e a importância deles é inegável -, a ênfase do da sociedade digital está nos laços fracos. Quando pedimos indicações de lugares novos para conhecer no Facebook, quando trocamos experiências profissionais em webinários, quando compartilhamos um texto em um blog e recebemos comentários, quando falamos por Whatsapp com amigos distantes que conhecemos em uma viagem, quando entramos no Twitter para acompanhar os pensamentos de quem admiramos, estamos navegando nas redes sociais a partir dos laços fracos. Sua fortaleza reside no fato de serem mais diversificados do que os laços fortes.
O fenômeno digital libertou as redes sociais das noções de tempo e espaço. A comunicação assíncrona (tempo) e a conexão com pessoas em qualquer região do planeta (espaço) são duas possibilidades importantes que foram potencializadas pelo meio digital. A internet é um lugar extremamente capilarizado que ainda resiste no formato de rede, a despeito de todas as tentativas de torná-la uma pirâmide. A hierarquia existe, mas parte dela se dissolve no infinito fluxo de valor do qual participam um número cada vez maior de pessoas comuns, que de outra forma não poderiam ter nem de longe o alcance que têm.
Não é fácil navegar nesse oceano. A chance de nos perdermos nas ondas de links é grande. Quando precisamos de um conhecimento ou recurso específico, as comunidades virtuais podem atuar como sinalizadores, indicando onde podemos ir. Elas funcionam como “filtros humanos inteligentes”, como cita Rogério da Costa, ou ainda, uma “autêntica enciclopédia viva”. Essas comunidades, por serem compostas de seres humanos e não apenas conteúdo e algoritmos, nos ajudam a enfrentar a sobrecarga de informação.
Uma das comunidades virtuais que mais incorporam a ideia de enciclopédia viva é a plataforma Quora. No site, é possível fazer perguntas sobre qualquer assunto e também responder perguntas de outros usuários. A base de perguntas é extensa, especialmente na versão em inglês da plataforma. E há uma preocupação genuína dos usuários em gerar respostas de qualidade, que então são votadas e classificadas, de modo que as melhores aparecem no topo da página. A arquitetura da comunidade foi pensada de maneira a estimular reflexões profundas, e isso parece ter atraído alguns nomes de peso como o fundador da Wikipédia Jimmy Wales e o ator, produtor e investidor americano Ashton Kutcher. Perguntas como “tudo bem eu mencionar minha startup falida no meu currículo?” convivem com outras como “como é ser sempre a pessoa mais esperta na sala?” Para esta última, a resposta mais votada foi: “é ruim, pois significa que você está na sala errada”.
Comunidades, sejam virtuais ou não, nos apoiam na desafiadora missão de extrair sentido de um mundo abundante. Peter Diamandis, cofundador e presidente da Singularity University, define abundância a partir do papel das tecnologias emergentes no processo de ampliar o acesso das pessoas a recursos que antes eram escassos. Mesmo com todos os desafios, a humanidade está muito melhor do que estava há séculos atrás, de acordo com o autor. Basta olhar os dados, como por exemplo a expectativa de vida global, que subiu 5,5 anos entre 2000 e 2016 — o maior aumento desde a década de 60 -, e a taxa global de subnutrição global, que caiu de 18,6% em 1991 para 10,8% em 2015. Mesmo assim, os noticiários seguem pregando o medo e a sensação de negatividade prevalece para muitas pessoas.
Por isso, para fazer valer a abundância, é preciso uma mudança de visão. Em vez de direcionar o olhar para a escassez, é hora de um olhar apreciativo para as oportunidades que as novas tecnologias e dinâmicas sociais estão criando. Tem para todo mundo: é apenas uma questão de acesso, de desbloquear fluxos e saber navegar no oceano de possibilidades que nos inunda. E se quisermos explorar ao máximo essas possibilidades, precisamos de comunidade.
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Este é um trecho do livro Core Skills que lançarei este ano junto com Alexandre Santille, Conrado Schlochauer e Tonia Casarin pela Teya.
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