Estratégias para educação autodirigida
Versão em português da palestra apresentada na conferência ÁAGIL 2018, em San Luis Potosí, México.
A aprendizagem autodirigida, por definição, bebe da intersubjetividade de cada pessoa que a pratica. Intersubjetividade significa um Eu que, ao interagir com seu entorno e especialmente com outras pessoas, vai formando sua conduta por meio das decisões que toma e que não toma. Autodireção não quer dizer fazer sozinho, e sim decidir autonomamente em relação ao próprio caminho. Autonomia é um atributo da relação. Nós, exemplares da espécie humana, somos resultados das relações que temos. Nós só pertencemos à humanidade porque crescemos lado a lado com outras pessoas humanas. Isso foi uma das coisas que Humberto Maturana, um biólogo chileno, descobriu nos seus estudos da Biologia do Conhecer.
Assim, a educação autodirigida é, ao mesmo tempo, autoeducação e altereducação. Se cultivarmos conexão, atenção plena ao aqui e agora, presença, se cultivarmos um olhar de aprendizado em relação a tudo na vida, um olhar de humildade e consciência de nossa ignorância, começaremos a aprender com tudo que nos cerca. O ensino obrigatório quase sempre vai enfraquecendo essa capacidade que todas as pessoas têm.
Se temos liberdade, ganhamos espaço para começar a exercitar o músculo da autonomia em nossas vidas. Para aprendermos de maneira autônoma, tomando nossas próprias decisões de maneira consciente, precisamos de estratégias. É claro que você pode ir sem estratégia mesmo, só confiando no que a vida vai te apresentar. Mas, como eu adoro essa expressão, não vamos jogar o bebê fora com a água do banho: se tem uma coisa que a ciência moderna nos ensinou é que as teorias e os conhecimentos sistematizados servem como lentes para enxergarmos o mundo e criarmos coisas novas. As teorias são possibilidades de entendimento, ainda que provisórias.
Quero compartilhar aqui duas “teorias” que criei para explicar e apoiar processos de aprendizagem autodirigida. Elas podem ser compreendidas como estratégias para potencializar nossos caminhos.
A primeira é o CEP+R, que desenvolvi junto com meu amigo Conrado Schlochauer. CEP+R é uma síntese das fontes de aprendizado disponíveis.
C significa Conteúdos. Textos, vídeos, livros, áudios, sites, artigos e blogs são exemplos de conteúdos. Conteúdo é uma fonte de aprendizado que conseguimos encontrar muito facilmente. O que mais existe hoje é conteúdo disponível. Mas pode ser um pouco difícil avaliar, selecionar e priorizar conteúdos se você não tem alguma vivência no seu tema de interesse. Conteúdo é conhecimento “morto”, isto é, o livro que alguém escreveu é como uma fotografia do pensamento daquela pessoa em determinado momento. Isso não é bom nem ruim, mas é importante estar consciente disso.
E significa Experiências. Caminhar na natureza, viajar, fazer um curso, participar de um ritual, realizar um projeto, testar uma ideia e propor uma roda de conversa são exemplos de experiências. Elas envolvem vivência e ação. Experiências têm um potencial de transformação muito grande e podem envolver outras pessoas ou não. Sua potência reside na capacidade que possuem de nos emocionar, de nos fazer sair do racional e acessar níveis de sabedoria mais profundos. As emoções, se bem trabalhadas, são um motor de aprendizagem vivencial.
P significa Pessoas. Pessoas — as que você conhece, as que sua rede conhece e poderia te apresentar e as que você ainda não conhece — são fontes de conhecimento “vivo”. Se fizermos as perguntas certas com a escuta apropriada, conseguimos descobrir verdadeiros tesouros a partir do que é expressado por elas. Diferentemente de conteúdos, as pessoas, especialmente as mais presentes, inventivas e reflexivas, são geradoras de novos conhecimentos e novas perguntas o tempo todo. Elas estão sempre se refazendo. Entrevistas são uma ótima forma de explorar essa fonte de aprendizado. E pessoas sempre podem te indicar outras pessoas.
R significa redes. Redes, comunidades, grupos e movimentos são oportunidades de ampliar nosso olhar, tomar distância e aprender com perspectivas diversas. A rede ALC é um ótimo exemplo disso. Outros exemplos no campo da educação alternativa são a IDEN (International Democratic Education Network), a Reevo, que recentemente se desfez e o movimento de unschooling, que possui inúmeros grupos auto-organizados ao redor do mundo. Participar de redes é uma ótima maneira de nos mantermos atualizados em relação ao que vem sendo criado e discutido nas áreas que nos interessam.
O mais curioso sobre o CEP+R é que cada fonte de aprendizado pode te levar a todas as outras. Em outras palavras, existe um CEP+R dentro do C, dentro do E, dentro do P e dentro do R. É um fractal. Se você assiste a um vídeo do TED, que corresponde a um conteúdo, a fala do palestrante pode te conectar a outros conteúdos, experiências, pessoas e redes potencialmente interessantes. Isso acontece muito frequentemente, se estivermos presentes. É a serendipidade em ação.
A segunda teoria eu batizei de 9 movimentos da aprendizagem. Se, ao cultivarmos um olhar de aprendizado em relação à vida, podemos aprender com qualquer situação, quais seriam os principais movimentos que precisaríamos fazer para potencializar essa atitude? Existem inúmeras formas de aprender. Se a busca é genuinamente curiosa e livre, a vida torna-se um manancial de oportunidades de aprendizado. Para descortinar oportunidades, penso que é preciso arriscar alguns caminhos.
Imaginar
Albert Einstein formulou algumas teorias sobre o universo que só muito tempo depois foram provadas. A imaginação, como nos ensina Bachelard, é a faculdade de propor imagens que ultrapassam a realidade.
Refletir
Bagunçar e reorganizar o pensar. Paulo Freire nos conta sobre a “ação-reflexão”, uma poderosa ferramenta que nos diferencia dos animais. Ir a fundo, pensar criticamente, incluir novas perspectivas são elementos do refletir.
Instruir-se
Informal ou formal, as opções são várias: ler um livro, fazer um curso, visitar um museu histórico, pesquisar na internet. Às vezes, achamos que a aprendizagem só se dá pela instrução, mas isso não é verdade. É só um dos caminhos.
Interagir
Conectar-se com pessoas. Pessoas não são apenas fontes inesgotáveis de conhecimento vivo. É entre elas que nasce a amizade, uma espécie de poção mágica que nos alivia o medo e a arrogância, como acreditava Ivan Illich. E menos medo e arrogância não serve apenas para nos tornar seres melhores, mas para, especialmente, aprendermos mais.
Seguir
Deixar-se guiar por um mentor ou simplesmente alguém que tenha o que você procura. No período medieval, aprendizes buscavam mestres com quem gostariam de aprender. Seguir exige coragem, persistência e discernimento.
Deslocar-se
Tudo que implica em mudar de lugar para ver com novos olhos. Viajar com intenção de aprender algo, fazer pesquisa de campo, impactar-se ao ver uma obra de arte, embarcar em um novo desafio. É uma movimentação que aguça a percepção.
Experimentar
Também responde por criar, testar, inventar, propor e geralmente vem junto com o imaginar e o refletir. É um pesquisar com as mãos, necessário para sairmos do conforto de nossas cabeças e confrontarmos a realidade metamorfoseante. Algumas paisagens só clareiam quando pisadas.
Sustentar no corpo
É preciso sustentar a aprendizagem no (e com o) corpo. Isso significa desligar o pensar periodicamente, dando folgas para a atividade intelectual por meio do caminhar, da arte, de ofícios manuais, do contato com diferentes texturas, cheiros, cores, paisagens. Sem sustentação, quem aprende corre o risco de “travar”, de entrar em looping, de se esgotar, de não conseguir ver um palmo a frente do seu nariz. A pessoa se vê paralisada na movimentação que a espiral da aprendizagem requer dele.
Compartilhar
Compartilhar não apenas o que se sabe, mas o que se está descobrindo é uma potente via de aprendizagem. Tem muito a ver com o interagir (outras pessoas terão acesso ao que você está aprendendo), com o deslocar-se (você muda de lugar, de alguém que está buscando para alguém que está comunicando/mostrando o que concluiu) e com o experimentar (finalmente, você vai lá e coloca a boca no trombone, isto é, todo compartilhamento de conhecimento é um teste, um protótipo, uma nova proposição que, agora, se sustentará ou não no contato com o mundo).
As formas de aprender, e são tantas, estariam agrupadas dentro desses 9 movimentos.
Proponho algumas perguntas para conversarmos:
- Que estratégias você costuma ou poderia utilizar para aprender de maneira autodirigida?
- O que não funciona pra você e por quê?
- Qual o sinal que faz você perceber que terminou de aprender algo?
- CEP+R faz sentido? Como poderíamos aprimorar esse modelo?
- Os 9 movimentos fazem sentido? Como poderíamos aprimorá-los?
- Que perguntas você está se fazendo neste momento?
Vamos conversar?
Muito obrigado!