O movimento da educação democrática à luz da teoria da ação dialógica de Paulo Freire
[atenção: contém academicismos :]
Pretendo, neste texto, fazer uma tentativa de aproximação entre o que se vem denominando de educação democrática e a teoria da ação dialógica de Paulo Freire. A primeira pode ser entendida, sinteticamente, como um movimento global de iniciativas, escolares ou não, pautadas por uma práxis educativa centrada em três princípios: autonomia dos educandos na definição de seus percursos de aprendizagem, gestão democrática do espaço escolar e relações não hierárquicas entre educadores e educandos (SINGER, 2008). A teoria da ação dialógica, por sua vez, foi sistematizada por Paulo Freire na obra Pedagogia do Oprimido no contexto de consolidação de sua educação problematizadora e conta com quatro características principais: a co-laboração, a união, a organização e a síntese cultural (FREIRE, 2015). Sua compreensão não se dá sem seu contrário, isto é, a teoria da ação antidialógica, também denunciada por Freire no mesmo livro, cujas estratégias opressoras são: a conquista, dividir para manter a opressão, a manipulação e a invasão cultural.
Minha hipótese é que as iniciativas que verdadeiramente buscam guiança na educação democrática, tal como sintetizada acima e delineada em mais detalhes à frente, podem ser compreendidas também como ações dialógicas, no sentido freireano do termo. A fim de examinar essa possibilidade, trato de analisar alguns discursos e documentos do movimento da educação democrática no sentido de compreender como eles se encaixam ou não na perspectiva da educação libertadora e dialógica de Freire. Tal entendimento pode ajudar a perspectivar esses projetos de um outro modo, o que pode servir para alimentar novas reflexões oriundas tanto das pessoas que realizam essas ações, como dos que se dedicam a pensar os princípios teóricos do movimento. Trata-se, pois, de reinventar uma das ideias centrais de Freire fazendo-a entremear com um universo distinto daquele que a originou.
Na primeira parte do texto, dedico-me a resgatar algumas noções centrais da educação democrática, com o intuito de conceituá-la e contextualizá-la num cenário em que as palavras “educação” e “democracia” assumem colorações cada vez mais plurais e até mesmo dissonantes. Em seguida, proponho um deslocamento conceitual no sentido de compreender os atores da educação tradicional também como oprimidos, operação já levada à cabo por autores como Martins (2014). A terceira e a quarta partes buscam descrever sucintamente a teoria da ação antidialógica, bem como sua antítese, descrições estas apoiadas nas características nucleares de cada uma. Construindo a partir das reflexões anteriores, o quarto tópico, além de apresentar a teoria da ação dialógica, também estabelece alguns paralelos já visíveis entre esta e os princípios e as práticas da educação democrática.
Educação democrática e sua (possível) concepção fundante de democracia
Inicialmente, é preciso trazer elementos para entender melhor o que estou chamando de educação democrática. Uma consulta feita no site da AERO (Alternative Education Resource Organization), instituição estadunidense que produz e dissemina informações a respeito de várias correntes educacionais consideradas “alternativas”, revela a existência de 260 escolas democráticas pelo mundo (AERO, 2017). Helena Singer, uma das principais pesquisadoras brasileiras nessa temática, vai além e aponta por volta de 500 iniciativas espalhadas por todos os continentes e especialmente recorrentes nos Estados Unidos e em Israel (SINGER, 2010). Além disso, estamos falando de um movimento que se identifica como tal e que tem certa coesão, apesar de suas concepções serem ainda percebidas como marginais no debate educacional. Há, inclusive, uma Rede Internacional de Educação Democrática (International Democratic Education Network ou IDEN) que organiza encontros globais como a IDEC (International Democratic Education Conference), sendo que, no Brasil, temos a atuação, já há vários anos, da Rede Nacional de Educação Democrática.
As escolas e demais iniciativas educacionais que se consideram democráticas inspiram-se, na seara teórica, pelo ideal de uma “democracia real” com ampla liberdade e participação decisória, com referências em Rousseau, Marx, Freud e seus discípulos diretos (p. 155). No campo prático, são frequentemente tomadas como referência por adeptos dessa concepção educacional experiências pioneiras no século XIX e início do século XX como a escola Yásnaia-Poliana, fundada pelo escritor russo Leon Tolstoi, o Lar das Crianças, dirigido pelo médico polonês Janusz Korczak, e a escola inglesa Summerhill, idealizada pelo educador escocês Alexander S. Neill. Em resumo, a liberdade de escolha e de influenciar os rumos do coletivo, estendida mesmo às crianças, assume caráter basilar na educação democrática, desde que temperada pela corresponsabilidade em relação ao outro e à comunidade.
Além do trabalho de Helena Singer, outro autor contemporâneo que lida com importantes aspectos da educação democrática é Yaacov Hecht. Hecht é uma voz proeminente no movimento, tendo contribuído para a fundação deste em Israel nos anos 80 e na disseminação do termo “escola democrática”. Em 1987, ele foi um dos principais responsáveis pela fundação da Escola Democrática de Hadera, ativa até hoje, cujo currículo e demais experiências de aprendizagem são totalmente escolhidas/criadas pelos educandos e a participação de todos nas decisões é incentivada por meio de mecanismos de gestão democráticos (HECHT, 2016). Seu delineamento a respeito da educação democrática é congruente com os três princípios sistematizados por Singer (autonomia na aprendizagem, gestão democrática e não hierarquia entre educadores e educandos).
Em seu livro Educação democrática: o começo de uma história, o educador israelense diz que “devemos criar um sistema educacional que possibilite que cada cidadão do futuro ‘anuncie’ sua existência através de sua criatividade exclusiva” (p. 256). Aqui, Hecht está afirmando seu entendimento a respeito do propósito da educação democrática: ajudar as pessoas a expressarem seu espírito criativo a partir da convivência em ambientes que respeitem e potencializem suas individualidades. Destaquei esse trecho especialmente porque o autor utiliza o verbo “anunciar” (to herald, no original em inglês), o que o aproxima do mecanismo de “anúncio/denúncia” empregado por Freire em vários de seus escritos.
Falando como um poeta, Paulo Freire desliza para sulear, anunciando potências que não querem ser desaproveitadas e denunciando formas ideológicas de orientação que nos deprimem. (LINHARES, 2017, p. 46)
É isso também o que Yaacov Hecht propõe, ainda que por outras vias. Ao anunciar o “inédito viável” de uma educação cujo objetivo é inundar o mundo de pessoas ousadas, emancipadas e também inéditas, ele denuncia simultaneamente a precariedade das concepções educacionais dominantes em fazê-lo, e como isso tem nos causado sofrimento.
As origens do movimento da educação democrática remontam às “ondas” de educação nova/progressista que ocorreram durante o século XX (HECHT; RAM, 2010). Na verdade, até mesmo antes disso é possível identificar algumas iniciativas que carregavam suas sementes, como a escola Yásnaia-Poliana, idealizada por Leon Tolstoi em 1857. No tocante à primeira onda, o trabalho do filósofo estadunidense John Dewey, que criou a Associação de Educação Progressista em 1919, impactou significativamente na disseminação de escolas com essa perspectiva em vários países. No Brasil, o movimento da Escola Nova teve como um de seus líderes Anísio Teixeira, que foi aluno de Dewey nos Estados Unidos e encampou algumas das ideias deste educador em sua pedagogia e em sua atuação política.
Ainda segundo Hecht e Ram (2010), a segunda onda de educação progressista aconteceu durante as décadas de 60 e 70, surgida no bojo das lutas políticas ocorridas no período em diversos territórios (protestos contra a guerra do Vietnã, a luta dos negros por seus direitos, as manifestações criativas de estudantes universitários por mudanças no sistema educacional, dentre outras). É possível traçar um paralelo cronológico entre tal afluxo de experiencias educacionais questionadoras mundo afora e o amplo reconhecimento da educação popular de Paulo Freire, que nesse momento lutava contra o regime militar brasileiro, sendo forçado a se exilar. A obra freireana alimentou e foi alimentada por essas experiências e por esse contexto, e na mesma esteira estavam pensadores do campo da psicologia humanista como Carl Rogers e filósofos anarquistas como Ivan Illich. Distinguindo-se entre si por suas concepções políticas e teóricas, esses autores, junto com muitos outros, escreveram críticas sobre a educação “bancária” e inauguraram formas mais emancipadas de conceber o ato educativo.
A educação democrática, de acordo com Hecht e Ram (2010), pode ser entendida como a terceira onda da educação progressista. Seu nascimento ocorre não apenas por meio de um desdobramento histórico das ondas anteriores, mas também a partir de certas características presentes no contexto contemporâneo, tais como as descritas por Singer (2010):
1. o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação que facilitam os processos de aprendizagem autônoma e a formação de comunidades de aprendizagem e de redes;
2. as teorias do conhecimento que preconizam a superação do paradigma disciplinar científico por relações mais combativas e multifacetadas;
3. os avanços nas pesquisas das ciências da cognição em relação aos aspectos motivacionais do aprendizado;
4. as transformações no mundo do trabalho no sentido da desregulamentação das relações, da imprevisibilidade das carreiras e da multiplicidade de caminhos profissionais;
5. o crescimento dos movimentos de reinvenção da democracia em suas várias dimensões — justiça, comunicação, saúde, economia, meio-ambiente (p. 44).
Soma-se a isso o fato de que, no século XXI, a humanidade já pode contar com o amplo reconhecimento institucional de documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pelas Nações Unidas em 1948 e, em seguida, seu desenrolar para o terreno infantil com a Declaração dos Direitos da Criança em 1959. Isso é importante porque a construção do conceito de educação democrática baseia-se amplamente na assunção dos direitos humanos (HECHT, 2016), inclusive na perspectiva de enxergar a criança como um ser que tem direito a ser livre e respeitada, assim como um adulto. Hecht deixa claro que a noção de democracia sustentada pela educação democrática não é lastreada em procedimentos governamentais, mas sim num “conjunto de valores” (p. 38) cuja intenção é “promover e implementar os direitos humanos na sociedade” (p. 38). Os dois objetivos das escolas democráticas expostos pelo autor, “educação para a indepedência” e “educação para a dignidade e o respeito humanos”, alinham-se também à promoção dos direitos humanos, entendidos sob uma perspectiva ampla.
Hecht e Ram (2010) propõem que a busca central da maioria das escolas democráticas tem sido responder à pergunta “Qual é a educação apropriada para uma sociedade democrática?” (p. 27). Para responder a essa pergunta, não há outro caminho que não seja refletir sobre que democracia queremos. Elie Ghanem, ao escrever sobre o assunto a partir do conceito formulado pelo sociólogo francês Alain Touraine, posiciona a ideia de liberdade de maneira central para que seja possível a emergência de sociedades democráticas. A democracia seria, então, uma “luta pela libertação em relação a algum poder” (GHANEM, 2007, p. 14), embora nunca deixe de ser um “espaço de tensões e conflitos” (p. 14). Tarefa fundamental das iniciativas educacionais seria, portanto, a “aprendizagem da liberdade” (p. 18), sem que haja uma camuflagem das disputas que tão bem caracterizam os ambientes tomados como democráticos. Ghanem continua, afirmando que
o processo educativo, indo do espírito crítico e da inovação à consciência da própria particularidade — feita de sexualidade, assim como de memória histórica — deve culminar no conhecimento-reconhecimento dos outros, indivíduos e coletividades, enquanto sujeitos (GHANEM, 2007, p. 18).
Vale dizer ainda que democracia, como conceito e como “palavra-ação”, como anúncio e também como denúncia, é reinvenção sem fim. Desde que emergiu, a democracia pressupõe, não como condição suficiente, mas necessária, aprender a viver democraticamente. Aprender a viver de tal modo que a convivência com o outro, diferente de mim, seja alargada de possibilidades. O outro, sendo visto e também enxergado, torna-se então sujeito, com pensamentos, sentimentos e quereres exclusivos, mas fundamentalmente humanos, o que me conecta com ele. Existe diferença, mas também há unidade na diferença. A partir daí, enxergando a convivência com o outro como enriquecedora, porque dialógica, nasce o nós. O ato educativo, percebe-se na obra freireana, é revestido por essa crença inabalável nas riquezas do outro, ainda que em situação de opressão. “Para isto, contudo, é preciso que creiamos nos homens oprimidos. Que os vejamos como capazes de pensar certo também” (FREIRE, 2015, p. 73). Tal visão, além de outra que dela se desdobra, a de que a aprendizagem é feita pelas pessoas em comunhão, sempre no plural, é comum tanto à educação democrática quanto à práxis pedagógica proposta por Paulo Freire.
Oprimidos da pedagogia
Uma perspectiva que considero fértil para relacionar educação democrática e a obra de Paulo Freire é considerar que os indivíduos submetidos à pedagogia tradicional também estão sendo oprimidos, ainda que não se trate de uma opressão de classe. Por toda a vida, Freire encaixou os conceitos de oprimido e opressor na teoria marxista, o que, ao meu ver, não invalida uma tentativa de deslocamento dessas noções. Apenas é preciso assumir que essa tentativa é de fato um deslocamento conceitual, e não uma continuidade ou uma permanência.
De fato, identificar a pedagogia tradicional, com suas imposições e controles de toda ordem, como opressora, além de, ao mesmo tempo, caracterizar os seres humanos que são vítimas desse sistema como oprimidos, independente de sua classe social, é um procedimento necessário neste artigo. Isso porque a teoria da ação dialógica foi produzida por Freire sob a égide da luta de classes, e a educação democrática, embora estabeleça diálogos importantes com o marxismo, não o tem como a pedra fundamental de sua construção. Apesar disso, o educador da escola democrática Lumiar Bruno Martins, em seu livro Oprimidos da Pedagogia: de Paulo Freire à educação democrática, afirma:
[…] alguns dos métodos utilizados nos Círculos de Cultura, por exemplo, tinham semelhanças à forma de trabalho destas escolas [democráticas]. Nos primeiros encontros eram levantados temas partidos dos próprios alunos, e através do debate e de considerações sobre estes é que seguia o processo de alfabetização em si. Partindo do respeito à cultura dos grupos, de seus interesses, não de ideias e realidades alheias (MARTINS, 2014, p. 110).
Percebe-se, com efeito, que embora alguns pontos de partida da teoria freireana e do movimento da educação democrática sejam distintos, suas implicações têm simetrias. Se entendemos alunos, professores e demais membros da instituição escolar como oprimidos, dado que “pobres e ricos dependem igualmente de escolas e hospitais que dirigem suas vidas, formam sua visão de mundo e definem para eles o que é legítimo e o que não é” (ILLICH, 1985, p. 17, grifos meus), é possível imaginar que o propósito da pedagogia do oprimido manifestaria-se também neles. Libertar essas pessoas da “escolarização do sociedade”, entendida como uma certa colonização de corpos e mentes orientada pelos ditames das instituições hegemônicas, é o objetivo da educação democrática.
Teoria da ação antidialógica e educação “tradicional”
Paulo Freire, no livro Pedagogia do Oprimido, reserva os últimos capítulos para refletir a respeito das teorias da ação antidialógica e dialógica, “a primeira, opressora; a segunda, revolucionário-libertadora” (FREIRE, 2015, p. 186). O autor opera, a partir do binômio denúncia-anúncio, uma análise detida das quatro características principais de cada uma, começando, não por acaso, pela antidialogicidade. Antes, porém, preambula no sentido de resgatar algumas noções já exploradas na mesma obra. Algumas das ideias retomadas pelo autor que me pareceram centrais são:
Homens e mulheres diferem-se dos animais por serem capazes de “emergir” do mundo, refletirem criticamente sobre ele e transformá-lo por meio de seu trabalho. São, assim, “seres da práxis” ou “seres do quefazer” (p. 167).
“O quefazer é teoria e prática” (p. 168), ou seja, toda ação humana é iluminada por teorias. Assim, torna-se necessário, para Freire, desenvolver uma “teoria da ação transformadora” capaz de potencializar a libertação dos oprimidos. Tal conceito confunde-se com a teoria da ação dialógica.
A postura dialógica deve acompanhar o processo revolucionário-libertador durante toda sua trajetória, sob pena de negar o caráter de “revolução cultural” que lhe é inerente. “A nossa convicção é a de que, quanto mais cedo comece o diálogo, mais revolução será” (p. 172).
O mito da absolutização da ignorância, que “implica a existência de alguém que a decreta a alguém” (p. 180), é um dos pilares da postura antidialógica praticada pelas elites dominadoras sobre os oprimidos.
Em seguida, Freire inicia seu detalhamento a respeito dos componentes da teoria da ação antidialógica, começando pela conquista. Afirma-a como uma necessidade, posto que “instaurada a situação opressora, antidialógica em si, o antidialógico se torna indispensável para mantê-la” (p. 187). As estratégias de conquista são variadas, das mais duras às mais sutis, e com Foucault talvez possamos dizer que, ao longo do tempo, os jogos de poder têm se tornado cada vez mais invisíveis e penetrantes.
A conquista, porque antidialógica, não é capaz de oferecer aos educandos um mundo a ser problematizado, a ser conhecido mais e mais criticamente para ser transformado, pelo contrário, ela oprime por meio da reificação da realidade, tornando-a cristalizada. A fim de transformá-la em algo imutável, são utilizados mitos, os quais vão promovendo “ad-mirações” falsas do mundo.
O segundo componente foi nomeado por Freire como “dividir para manter a opressão”. Cientes de que a união dos oprimidos, que passam a enxergar não somente seu contexto local, mas a localidade em suas relações com a(s) totalidade(s), percebendo seus companheiros oprimidos em outras paisagens, é nociva à opressão que promovem, os opressores tentam frear quaisquer tentativas nesse sentido. O oprimido, por sua condição, “hospeda” o opressor em si, de modo que por vezes o rechaça, e por vezes se sente atraído por ele, o que torna mais fácil o ato de dividir para manter a opressão.
A terceira característica da teoria da ação antidialógica é a manipulação, a qual, assim como todas as outras, gira em torno da conquista. A postura manipuladora das elites opressoras ocorre, segundo o autor, quando os povos oprimidos vão emergindo de sua condição e se tornam capazes de questionar o status quo. Tais questionamentos são respondidos pelas elites com propostas superficiais de “diálogo”, como os pactos, por exemplo. Manipular, pois, serve para “anestesiar” e confundir as camadas populares, amaciando-as e fazendo-as regredir à condição de imersão. Serve, ainda, para evitar sua verdadeira organização, da qual não poderia escapar a problematização de sua realidade.
Por último, Freire denuncia a invasão cultural como quarto elemento da antidialogicidade. Sobre essa característica, o autor afirma que se trata da “penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão de mundo, enquanto lhes freiam a criatividade” (p. 205). De maneira semelhante ao mito da absolutização da ignorância, para que a invasão cultural seja bem-sucedida é importante que os invadidos acreditem na sua inferioridade perante os invasores. Nem sempre, porém, a mentalidade invasora é consciente ou proposital, de modo que pode surgir em indivíduos “sobredeterminados” (p. 207) pelas estruturas autoritárias a que foram submetidos.
A teoria da ação antidialógica, cuja conquista é voltada para cindir, manipular e invadir, tem seu paralelo na educação dita “tradicional”, objeto de crítica não apenas da educação democrática, como das diversas correntes educacionais alternativas. Ainda que não não possamos afirmar que a educação tradicional seja monolítica, com Ivan Illich poderíamos dizer que a escolarização da sociedade imbuiu suas práticas de várias características comuns, que a tornam relativamente parecida em diversas partes do globo. Várias críticas de autores que se identificam com o movimento da educação democrática seguem nessa linha:
O modelo de escola pensado durante a Revolução Industrial é predominante na maior parte do mundo: crianças enfileiradas em carteiras ouvindo um “professor-orador”; toca o sinal, sai um professor, entra outro; para uma matéria, começa outra. E todo este processo, que envolve alto custo emocional, intelectual, psicológico, material e financeiro, é legitimado através da ideia de que a escola oferece o único caminho tanto para a ascensão social como para o desenvolvimento intelectual (MARTINS, 2014, p. 30–31).
O “velho sistema educacional” visa a preparar o estudante para uma realidade que é percebida como “única” e inequívoca (HECHT, 2016, p. 38).
O ponto chave desta crítica (ao papel da educação na modernidade) está no compromisso fundamental da modernidade com a heteronomia que foi descrito por Michel Foucault. Sua interpretação de como o poder disciplinar atinge os indivíduos, penetra em seus corpos, insere-se em seus gestos, suas atitudes e seus discursos deve ser apreendida como o ponto de partida para uma crítica imanente à educação moderna (SINGER, 2010, p. 22).
Paulo Freire, ao definir do que se trata a educação bancária, também caminha por um trajeto de crítica semelhante aos dos autores acima referidos. Todos compartilham a ideia de que há uma educação que “embrutece”, para usar o termo de Jacques Rancière, e outra que emancipa. A primeira, com seus “depósitos” de conteúdo e “transferências” de visão de mundo, é facilmente identificável como uma ação antidialógica.
Teoria da ação dialógica e educação democrática
A co-laboração, primeiro elemento da teoria da ação dialógica, apresenta-se quando “há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação” (FREIRE, 2015, p. 227). O diálogo, aspecto primordial da co-laboração, “não impõe, não maneja, não domestica, não sloganiza” (p. 228). Para que tal postura aconteça, é preciso que educadores e educandos percebam-se como sujeitos, para que juntos, em comunhão, possam operar o desvelamento do mundo. Isso, por sua vez, requer e ao mesmo tempo gera confiança.
Penso que a co-laboração, no contexto dos que se identificam com a educação democrática, poderia ser a busca constante, por parte dos educadores adeptos dessa concepção educacional, em dialogicizar suas relações com os educandos, evitando posturas hierárquicas (SINGER, 2008). Há também, aqui, uma aproximação com a terceira característica da teoria da ação dialógica de Freire, a organização, visto que esta é construída pelo autor a partir da dinamicidade entre liberdade e autoridade, o que pressupõe uma luta contra a licenciosidade e o autoritarismo (FREIRE, 2015). A educação democrática, que privilegia a liberdade, mas também preserva o papel dos educadores na tarefa de apoiar os educandos na progressiva conquista de sua autonomia, parece trabalhar da mesma forma.
Os princípios de gestão das iniciativas de educação democrática também aproximam-se dos princípios da ação dialógica, notadamente a co-laboração e a organização.
Apesar das distinções, o modo de funcionamento dessas escolas tem em comum o fato de colocar em movimento elementos que conformam uma vida em comunidade sem ativar o dispositivo de moralização que opera por meio da identificação com a norma e a submissão. A característica básica e diferenciadora é que nelas o poder pertence a todos, sendo as regras que passam por constantes exames e não as condutas individuais (SINGER, 2010, p. 156).
Co-laborar, no sentido de trabalhar em conjunto pela libertação e pelo desvelamento crítico do mundo, é uma postura que não pode acontecer se há submissão, seja à figura do educador ou da equipe diretiva, seja às regras criadas arbitrariamente. Se, por um lado, há papéis e níveis de responsabilidade distintos, isso não quer dizer que a gestão e o bem-estar da coletividade não sejam tarefas de todos.
No que tange à característica da organização, a equivalência pode ser feita também com os processos de tomada de decisão e ação dos projetos de educação democrática. Assembleias, comitês de responsabilidade, instâncias de resolução de conflitos geridas por educadores e estudantes, agendas de atividades abertas, tudo isso parece alinhar-se ao “momento altamente pedagógico, em que a liderança e o povo fazem juntos o aprendizado da autoridade e da liberdade verdadeiras que ambos, como um só corpo, buscam instaurar, com a transformação da realidade que os mediatiza” (FREIRE, 2015, p. 245).
A característica de união, por sua vez, é evidenciada por Paulo Freire como, primeiro, um ato de questionamento da realidade vivida pelos oprimidos, para que então eles possam desvendar sua condição e, a partir disso, unir-se a outros indivíduos e povos na luta comum pela sua libertação. Ao entender a educação democrática como um movimento de resistência ao paradigma educacional dominante e opressor, percebendo suas volumosas iniciativas de encontros internacionais, continentais e nacionais e seu forte caráter político, talvez seja possível encaixar a união como elemento fundante de seu funcionamento. Um exemplo nesse sentido é a IDEC, conferência mundial iniciada em 1993 por Yaacov Hecht com o intuito de criar diálogos sobre como transformar a educação. No site da última edição do evento, que em 2017 retornou a Israel, seu local de início, lê-se:
Professores, pais, crianças, educadores, teóricos, bem como empreendedores participam da IDEC a fim de aprender, ensinar, descobrir e se inspirar. Algumas pessoas encontram-se na conferência todo ano e continuam a cooperar por muito tempo ainda após o fim do evento (IDEC, 2017, tradução minha)
Na lista de objetivos da IDEC 2017, constam vários pontos que se aproximam da ideia de “unir para a libertação”, elemento fundante da teoria da ação dialógica de Freire. São eles: “criar um campo de discussão sobre educação democrática para educadores ao redor do globo”; “lidar com obstáculos num ambiente de suporte solidário”; “espalhar a ideia da educação democrática e inovadora pelo mundo” (IDEC, 2017). Vale observar que tal articulação global só começou porque houve, em distintas partes do mundo, pessoas que se perceberam “proibidas de estar sendo” em seu quefazer educacional. Por meio do trabalho de lideranças (dentre elas, Hecht), esses indivíduos venceram (estão vencendo) sua situação de opressão por meio, especialmente, da interação com outros projetos que compartilham das mesmas dores e do mesmo propósito. Unidos estão, em suas diferenças.
O último aspecto da teoria da ação dialógica é a síntese cultural, cuja base é o profundo respeito pelo mundo dos educandos, partindo deste para a construção conjunta das pautas de estudo e ação nos ambientes educativos. O ponto de partida da síntese cultural é “a investigação dos temas geradores ou da temática significativa do povo” (p. 248), o que parece se alinhar à “gestão democrática do conhecimento” (SINGER, 2008) praticada em muitas escolas democráticas, em que os educandos são os protagonistas das escolhas a respeito do quê e como aprender, além de participarem da construção dos currículos, dos quais são os principais interessados.
De outro lado, é possível perceber um paralelo entre a construção de currículos feita de maneira impositiva e arbitrária e a postura antidialógica de invasão cultural proposta por Freire. O que costuma ocorrer na educação democrática, pelo contrário, é que os educadores, “ainda que cheguem de ‘outro mundo’, chegam para conhecê-lo com o povo e não para ‘ensinar’, ou transmitir, ou entregar nada ao povo (FREIRE, 2015, p. 247, grifos do autor). Por esse ângulo, vejamos a interpretação de Helena Singer a respeito de como a construção do conhecimento é realizada nas escolas democráticas:
Do ponto de vista epistemológico, a educação democrática coloca-se na perspectiva da reconciliação dos ideais de conhecimento e democracia de que fala Prigogine. Ao propor a coerência entre a gestão política e a gestão do conhecimento, possibilita que a escola se organize como instituição que reconhece a necessidade da liberdade, da criatividade, do prazer e da responsabilidade para a produção do conhecimento (SINGER, 2008, p. 25)
Ao fazer a opção pela vida prudente, a educação democrática legitima as experiências de conhecimento da comunidade e reconhece estudantes e educadores como iguais, membros de uma mesma comunidade que se co-responsabilizam por suas escolhas e pelo bem comum. (SINGER, 2008, p. 26)
Ao anunciar a liberdade, a criatividade, o prazer e a responsabilidade como princípios da “teia” (em oposição à “grade”) de aprendizagens tecida pelos atores e autores dos projetos de educação democrática, Singer ecoa Freire. Na mesma linha, reconhecer “estudantes e educadores como iguais” é condição necessária para operar a horizontalidade cultural necessária à síntese. Outro requisito é a legitimação de conhecimentos da comunidade apontado pela autora, que se funde à preocupação de Freire em conhecer e enaltecer antropologicamente os quefazeres do povo, posicionando-os como autênticas construções humanas, ainda que condicionadas pelo seu tempo-espaço, isto é, pela história. Uma vez iguais na possibilidade de construir pontes para sua libertação, educandos e educadores democráticos são capazes de realizar o propósito da pedagogia do oprimido, “aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade” (FREIRE, 2015, p. 43).
Considerações finais
Pelo exposto, percebe-se os numerosos pontos de contato entre a educação libertadora de Freire e a educação democrática, especialmente no que se refere aos paralelos com a teoria da ação dialógica. Muitos outros poderiam ainda ser levantados, com especial atenção ao período de Paulo Freire como Secretário de Educação de São Paulo-SP, em que propôs a construção de uma educação pública popular. Tudo isso pode e deve ser objeto de trabalhos futuros.
A pesquisa realizada para compor este artigo não se ocupou de tantos exemplos “de campo”, o que pode ser considerado uma limitação e certamente figura também como um possível objeto de investigação, inclusive já em curso. Projetos de educação democrática, assim como quaisquer outras iniciativas educacionais, também têm contradições, conflitos, lutas e fraquezas que merecem ser problematizadas. Teoricamente, no entanto, parece ser possível afirmar que suas raízes são dialógicas.
Referências
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HECHT, Yaacov. Educação democrática: o começo de uma história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. Coleção Invenções Democráticas, n. 6.
HECHT, Yaacov; RAM, Eyal. Dialogue in Democratic Education. e-Journal of Alternative Education. Issue 1, Jan-2010. Disponível em: <http://faculty.nipissingu.ca/carlor/files/2013/02/Intrafamily_Differences_and_Conflict_Resolution.pdf#page=28>. Acesso em: 19 dez. 2017.
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MARTINS, Bruno. Oprimidos da Pedagogia: de Paulo Freire à educação democrática. São Paulo: Nibelungo, 2014.
SINGER, Helena. A gestão democrática do conhecimento: sobre propostas transformadoras da estrutura escolar e suas implicações nas trajetórias dos estudantes. Campinas: LEPED/Unicamp, 2008, 230 p. (relatório final de pós-doutoramento). Disponível em: <https://www.academia.edu/30667612/A_GESTÃO_DEMOCRÁTICA_DO_CONHECIMENTO_SOBRE_PROPOSTAS_TRANSFORMADORAS_DA_ESTRUTURA_ESCOLAR_E_SUAS_IMPLICAÇÕES_NAS_TRAJETÓRIAS_DOS_ESTUDANTES>. Acesso em: 28 ago. 2017.
SINGER, Helena. República de crianças: sobre experiências escolares de resistência. Ed. rev., atual. e ampl. Campinas: Mercado das Letras, 2010.
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