O que aprendi com Maturana sobre o amor, a educação e a vida
Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente — o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. (Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas)
A gente precisa aumentar a cabeça, para o total. Incorporar, como se fosse nosso (porque é), o mundo das outras pessoas e as outras pessoas, no mundo. Todo mundo, no fundo, é uma coisa só. Isso quer dizer que está tudo conectado. O amor explicita essa conexão, e ao explicitá-la, podemos aprofundar nosso entendimento sobre o que e quem nos cerca. Somos mais inteligentes com o amor. O amor é a união daquilo que a falta de amor teimou em separar. Na verdade, somos um Interser, para usar o termo de Charles Eisenstein, que diz: “o preceito fundamental da nova história é o de que nós não somos separados do universo, e que nosso ser participa do ser de todo mundo e de todas as outras coisas”. Quando fazemos algo que impacta outros seres — basicamente tudo — , não é “como se estivéssemos” fazendo algo que impacta a nós mesmos. Estamos de fato impactando a nós mesmos. Como Eisenstein afirma, isso vai além da interdependência. O buraco é mais embaixo.
Humberto Maturana aposta em um trajeto semelhante. O biólogo que aprendi a amar afirma que nossa existência é, desde o início das coisas, relacional. Nós não conseguiríamos ser humanas ou humanos sem outras pessoas humanas. Nossa espécie cria cultura a partir da biologia. Graças ao desenvolvimento de uma área do cérebro chamada córtex pré-frontal, fomos capazes de criar formas de linguagem mais e mais complexas. Em algum momento de nossa história, surge a autoconsciência, e isso muda tudo. Sabendo de nossa própria existência, nos damos conta também de nossas responsabilidades para com os outros seres e o universo. Começamos a nos perguntar: se eu sou alguém, o que é que existe “fora” de mim? Qual é o meu papel em relação a esta realidade que agora percebo que percebo? Inúmeras explicações nós damos para nomear e entender as coisas do mundo. Simbologias, arte, deuses, mitos, histórias, filosofia, ciência são algumas delas. O homo sapiens, desde o advento do “linguaguear” e da autoconsciência, sabe que precisa aprender para viver. Torna-se, assim, homo discens, ou “pessoa que aprende”. Na verdade, na perspectiva de Maturana, todos os seres vivos aprendem. Mas somente nós, humanas e humanos, queremos aprender e sabemos que precisamos aprender.
O amar, em Maturana, é aceitar o que e quem está fora de nós como legítima ou legítimo. Mas o que está fora de nós também habita dentro. Criamos imagens das coisas e das pessoas, e até da gente mesmo. Como lidar, então, com o potencial conflito entre nossas imagens internas e as outras coisas, as outras pessoas e até a gente mesmo? Aprendi com Krishnamurti que o conhecimento pode significar uma prisão. Se eu julgo que conheço alguém, ou eu mesmo, estou julgando com base em experiências do passado. Com base em minhas próprias leituras sobre essas experiências. Para fazer certas coisas é importante, sim, ter conhecimento, mas talvez o mais importante, especialmente em tempos como o nosso, seja não saber. O não saber é um lugar sinuoso, que parece não falar a mesma língua que nós. Precisamos construir ao menos uma morada de campo lá se quisermos compreender as outras coisas, as outras pessoas e a gente mesmo.
O amar possibilita aumentar nossa cabeça. Somente por meio das interações com o meio e com as pessoas é que conseguimos distinguir ilusão e percepção. Mas essas interações precisam ser baseadas no respeito mútuo e na aceitação de outras realidades, sob pena de nos trancarmos na sala escura de nossas crenças antigas. A certeza sempre restringe nossa liberdade e, frequentemente, a das pessoas ao redor. A certeza faz com que tenhamos a audácia de obrigar outras pessoas a fazer ou a não fazer certas coisas — usualmente grupos desprivilegiados como crianças, mulheres, negros e homossexuais. Temos certeza de que essas pessoas não sabem o que é bom. Precisamos ensiná-las a viver. A educação como a conhecemos (escolar, disciplinar, obrigatória, conteudista) é provavelmente uma das formas mais sutis de dominação. É um dos ambientes em que mais falta amor. Na falta de amor, reina a separação, e quando há separação, alguém não está sendo visto, não está sendo enxergado. Quando eu não sou visto, é como se minha existência levasse um tiro. Ao ser baleado, alimento uma emoção de rejeição. Como queremos que nossas crianças se tornem pessoas adultas tolerantes se empurramos goela abaixo delas a fórmula de Bhaskara? Como queremos que elas rejeitem fundamentalismos se ensinamos que a norma culta é a única forma correta de se expressar? A rejeição gera indiferença e ódio. Eu aprendo a odiar quando não sou visto, isto é, quando não sou amado. Se não sou amado, não aprendo a confiar, e se não confio, tento me proteger em alguma caverna onde apenas uma verdade seja professada. Ser visto é ter escolha. Ser visto é ser “acreditado” em seus caminhos.
O que é um espaço ou uma situação educativa de fato? É um momento no qual existe amor. O amor na situação educativa é revestido de curiosidade, apreciação e por um sentimento de investigação ou de aventura. As pessoas se sentem poderosas porque estão se aventurando na excitante missão de descobrir-criar suas obras-primas. O amor energiza a expedição, porque faz com que as pessoas se sintam parte de uma comunidade. Pode ser que exista alguém que se encarregue de sustentar o campo. Alguém que lembre às pessoas envolvidas que naquele espaço existe amor, e por isso curiosidade, apreciação e estímulo à aventura. Alguém que ajude a regar as relações, mas que também promova problematizações, porque o mundo infelizmente não é só amor. Esse alguém é a educadora ou o educador.
A educadora ou o educador devem atuar potencializando a curiosidade de quem aprende, seja por meio de um estímulo à sua autonomia, seja por meio de convites. Um convite é uma experiência de aprendizagem ofertada às pessoas num ambiente educativo que, por ser convite e não obrigação, nasce e morre com a possibilidade de ser recusado. Não só quem educa pode fazer convites, quem aprende também. A estrutura deve ser deliberadamente criada para que todas as pessoas possam compartilhar o que sabem com quem queira saber. Ou então convidar outras pessoas para se juntar a elas numa investigação coletiva. Ou, ainda, terem uma vivência juntas. Quem educa pode e deve arquitetar essa estrutura libertária de aprendizagem e zelar por ela. Zelar não num sentido de sua arbitrária conservação, mas sim de seu contínuo refazimento a partir dos anseios da comunidade. A educadora ou o educador são, portanto, guardiões de uma certa cultura de aprendizagem que impulsiona quem aprende na direção de seus sonhos.
Minha intuição me diz que a coisa mais importante é acreditar nas pessoas. Se eu sou uma pessoa que educa, eu devo acreditar nas pessoas cujos caminhos de aprendizagem eu quero apoiar. Eu devo acreditar em suas histórias de vida, e para isso eu preciso conhecê-las, e eu devo acreditar em seus interesses e em suas ideias. Acreditar significa um certo jeito de ver. Ver dando suporte a todo momento e ao mesmo tempo suportando comedidamente meu ego. Devo acreditar mesmo que uma voz em meu interior me diga que a pessoa vai errar. Isso não significa que eu não possa apontar possibilidades, sugerir caminhos ou dizer o que penso. Só que, se eu disser o que penso toda hora, eu não estou dando espaço suficiente para que a pessoa aja por si. Assim eu a sufoco. É preciso sempre deixar claro, na relação entre educadora ou educador e aprendiz, que todo ponto de vista é somente a vista de um ponto. O mundo existe, sim, mas nós só podemos saber de sua existência e navegá-lo por meio de nossos corpos. E tudo que nossos corpos conseguem emitir são pontos de vista. Nós não conseguimos sequer demonstrar a veracidade de uma realidade alheia à nossa observação, porque, como Maturana diz, tudo que é visto é sempre visto por alguém.
Nikola Tesla, o grande gênio da eletricidade, viajou para os Estados Unidos para encontrar Thomas Edison, por quem nutria bastante admiração. Tesla havia desenvolvido uma ideia de um motor de corrente alternada, algo que Edison e outras pessoas do ramo consideravam impossível. Todos as lâmpadas de Edison funcionavam via corrente contínua, e o motor de corrente alternada, se materializado, representaria um grande ganho de eficiência no setor elétrico. Tesla, ao mostrar sua ideia para Edison, foi desacreditado. Edison não conseguiu enxergar com os olhos de seu funcionário. Deixou-se levar por suas próprias leituras sobre experiências que vivera no passado. Julgando-se portador de um conhecimento infalível, viu seu império ruir quando Tesla encontrou os meios e a força interior para concretizar sua invenção em outro lugar.
Edison poderia ter acreditado em Tesla, mas não acreditou. Estava cego. Não foi capaz de praticar o amor. Acreditar no caminho de alguém é amar.
Sozinha ou sozinho, ninguém tem todas as respostas. Na verdade, tudo que podemos entrever do mundo são hipóteses. É preciso cultivar um olhar de pesquisa em relação à vida. É dolorido, mas nós talvez nunca tenhamos certeza. Ao mesmo tempo, nunca ter certeza nos abre com potência para a outra ou o outro. Nunca ter certeza é sempre um convite para que aprofundemos e alarguemos nossas visões de mundo. Como Paulo Freire gostava de dizer, nós somos seres inacabados. E precisamos estar cientes disso. Se isso nos escapa, deixamos de ver todo um mar de possibilidades, como Thomas Edison.
As hipóteses podem ser entendidas também como pressupostos. Para criar nossos entendimentos sobre o mundo, nós criamos pressupostos, isto é, explicações derivadas de nossas observações. O que é, então, o diálogo? É a ousadia de colocar nossos pressupostos à prova na convivência. O maior risco do diálogo é você mudar de opinião. E se o diálogo te afetou, você aprendeu, ainda que não mude de opinião. Não é preciso abandonar seu ponto de vista para acolher outro: eles podem coexistir.
Eu posso compreender, ao conversar com uma pessoa muçulmana, porque ela atribui importância ao ato de orar cinco vezes ao dia. Eu posso compreender isso profundamente se me dedicar a entender as origens de seu pensamento. Ao fazer isso, posso inclusive criar condições para que ela mesma reinterprete sua visão, porque toda vez que contamos algo a alguém que se interessa por nós, ganhamos a chance de nos reexaminar. A atenção que dirigimos a alguém numa conversa é curativa e transformadora. Se me permito o diálogo nessa situação, isso não significa que eu começarei a rezar cinco vezes ao dia, mas certamente não serei o mesmo após incorporar —isto é, unir, trazer para dentro — a história e os significados daquela pessoa. Amar é isso: unir aquilo que a falta de amor teimou em separar.
Como me ensinou meu amigo Rubén, o segundo anterior não determina o seguinte. Se não determina, por um lado, condiciona, por outro. Honrar a própria trajetória deve ser tão importante quanto a possibilidade de reconfigurar a rota. Nós somos os únicos seres da Terra que conseguimos sair do suporte e transformá-lo em mundo, sair da vida e anunciar a existência, para usar as palavras de Freire. Nós, humanas e humanos, ganhamos de presente a capacidade de pensar e criar o imprevisível. Nós pensamos, sentimos e queremos, e com isso (e por isso) fazemos cultura.
Se olharmos para as nuvens, podemos ser levados a pensar que elas estão paradas. Basta um olhar mais atento para percebermos que elas se movem graciosamente e sem alarde. Se tudo está se movendo, o que queremos conservar? O que queremos conservar em nosso viver? O que é realmente importante? Mario Sergio Cortella diz que importante vem de importar, ou seja, absorver. Quando alguma coisa ou pessoa é importante par mim, eu a absorvo. Eu diria que esse movimento de absorver é como criar um altar para algo ou alguém dentro de si. Se a cultura pode ser refeita, ainda que pareça engessada, se as nuvens estão sempre se movendo, ainda que pareçam imóveis, qual é o olhar que preciso cultivar para que nossos mais belos mundos possam nascer? Olhar como e para o quê? Olhar com que qualidade e para quem? Que altar é esse que precisamos criar e que nos possibilitará unir o que está separado?