O valor de ser autêntico (em vez de tentar ser o melhor)
O álbum era para ser simples. Acabou não sendo nem um pouco. Como a minha vida. (Amanda Palmer)
Amanda Palmer ficou mundialmente famosa quando palestrou no TED sobre a arte de pedir. Sua fala começa com uma performance para relembrar os tempos em que trabalhava como estátua humana. Todos os dias, ela encarnava a “noiva de dois metros e meio” na praça Harvard, em Boston. Amanda aguardava pacientemente pelo momento em que aquela experiência tão inusitada geraria um sentimento especial em alguém. Um sentimento de conexão. O dinheiro vinha como consequência, sempre de maneira espontânea.
Antes de se tornar palestrante e escritora best-seller, Amanda Palmer já era musicista. Seu primeiro álbum solo, “Who Killed Amanda Palmer” (Quem Matou Amanda Palmer, em tradução livre), “era para ser simples”, mas não foi. Antes de começar a gravá-lo, ela recebeu um e-mail de Ben Folds, um conhecido músico da cena de rock alternativo, dizendo como sua música o inspirava. Ben elogiava não apenas os aspectos técnicos, mas como a arte de Palmer era “verdadeira”. Deste primeiro e-mail nasceu uma troca genuína e profunda, e os dois acabaram trabalhando juntos no disco. Toda a história, contada em primeira pessoa com riqueza de detalhes e recheada de paixão e vulnerabilidade, pode ser conferida no site do álbum. Os bastidores ganharam relevo: na verdade, não há muita distinção entre backstage e palco na vida de Amanda Palmer. Compartilhar o processo tanto quanto o resultado é, talvez, um dos traços que a torna uma pessoa autêntica.
O que exala da arte e da vida de Amanda não seria digno de nota se ela forçasse ser algo que não é. Ser autêntico tem bem pouco a ver com “ser o melhor” e mais a ver com “ser você mesmo”. De fato, tentar ser o melhor pode atrapalhar a autenticidade.
Quer outro exemplo? Jout Jout, nome artístico da youtuber Júlia Tolezano, grava vídeos despretensiosos para falar de coisas que de algum modo todos vivemos no dia-a-dia. Seu jeito de conversar não é ensaiado e ela definitivamente não lê um teleprompter. Ainda que haja boas doses de edição, seu canal cresce com sua leveza e espontaneidade.
Em uma entrevista de 2015, quando ainda nem era tão conhecida, Júlia disse: “faço o vídeo que eu preciso fazer na hora. Se eu faço um vídeo empoderador, é porque eu precisava ser empoderada. Sabe o vídeo ‘Tá Todo Mundo Mal’? Então, eu tava mal”. Como um vídeo feito com o intuito de dizer coisas para si mesma pode fazer tanto sentido para milhares de pessoas? Talvez justamente por isso: ao se conectar com o que é verdadeiro dentro, magicamente nos conectamos com coisas muito essenciais que residem também no interior de outras pessoas. O ser humano, afinal de contas, pode ser culturalmente diferente, mas certas emoções e importâncias todos nós temos. Quando somos capazes de acessar o que é essencial em nós e compartilhar isso de maneira verdadeira, algo grandioso acontece.
Jout Jout não pertence à atual geração de jovens, a geração Z, mas quase poderia pertencer. De acordo com um estudo da Box 1824, a True Gen ou geração da verdade — quem nasceu entre 1995 e 2010 — entende que qualquer definição é limitante. O que importa é quebrar estereótipos e evitar rótulos a todo custo. O propósito desses jovens é integrar pessoas e perspectivas e viver o seu verdadeiro eu, que não é facilmente capturado por ideologias, dogmas ou outros conceitos estreitos. A inclusão é um valor importante, de modo que vale mais o “e” do que o “ou”. Trabalhar em um emprego só ou viver casado a vida toda são crenças assustadoras, mas se alguém assim o desejar, também não é problema, desde que não imponha isso aos outros. De modo geral, a geração Z está, nunca é. E esse refazer constante ocorre porque eles querem viver autenticamente o tempo todo.
Não é preciso ser musicista ou youtuber para entrar em contato com sua autenticidade. A força desse atributo pode vir à tona para qualquer um, mas cada pessoa precisa encontrar sua própria maneira de conquistá-lo. Senão não seria autêntico. Mas por que a autenticidade é tão importante agora e no futuro?
Talvez uma outra forma de perguntar seria: por que investir em ser autêntico em vez de tentar ser o melhor? É possível “trabalhar” a própria autenticidade? Nós entendemos que sim. As razões para fazer isso são várias, mas a mais importante é que pessoas autênticas tendem a ser mais felizes. Isso é demonstrado em pesquisas no campo da psicologia, como se vê em um artigo do Journal of Counseling Psychology de 2008 que afirma que indivíduos mais autênticos tendem a ser mais seguros de si, extrovertidos, agradáveis, conscientes, abertos e adaptáveis. Geralmente, lembramos dos momentos em que nos permitimos ser nós mesmos como momentos de felicidade. Não há pressão para nos comportarmos de formas alheias às nossas necessidades, ou se há, sabemos como manejá-la.
A busca por ser o melhor não deixa de ser uma máscara que usamos para tentar nos sobressair em um mundo escasso. Esta é a história que nos contaram desde que nascemos: precisamos nos destacar dos demais para atingir os ideais de sucesso que nossa cultura nos condiciona a aceitar. Quem obteve sucesso é quem se sacrificou arduamente e, assim, conseguiu ser superior aos outros. Como se houvesse uma régua medindo até que ponto alguém “venceu na vida”. Ser “melhor” em qualquer quesito é sempre uma questão de perspectiva. E a busca por vencer a todo custo gera comparação, medo, culpa e frustração.
A demanda por se destacar também se relaciona com uma questão ética. Howard Gardner, pesquisador e psicólogo americano, descobriu que alguns dos “melhores” alunos de escolas americanas, uma vez tendo chegado ao mercado de trabalho, até gostariam de manter um alto rigor ético em sua atuação profissional, mas não o faziam. O motivo? Os outros não faziam.
Alguns deles tentaram ser excelentes, éticos e engajados, mas muitos nos disseram que não podiam se dar ao luxo de ser éticos. Isso porque era muito importante para eles ter sucesso, dinheiro, poder, prestígio, proeminência. Já que estavam competindo com seus pares, eles suspeitavam que os outros estavam cortando caminho, e assim eles não estavam dispostos a manter seus padrões, se isso significasse que iriam perder para alguém menos ético. Um dia eles seriam éticos.
A competição, por assumir que existem poucos lugares no topo da pirâmide, pressiona as pessoas a se comportarem de maneiras menos autênticas. Abandonamos princípios fundamentais para nós porque senão o outro vai nos ultrapassar. Só que estamos cansados de tentar ser o melhor e de assistir outras pessoas fazendo o mesmo. Hoje e no futuro, as características autênticas de cada um estão ganhando cada vez mais espaço. E um fazer autêntico é, por definição, um fazer ético, porque a ética nasce da essência do ser humano.
A autenticidade nos convida, em primeiro lugar, a um questionamento sobre os significados da palavra sucesso para cada um. Ser bem-sucedido só faz sentido se pudermos ser autênticos, basta ver a quantidade de pessoas que se sentem pressionadas (ou inautênticas) com a fama, por exemplo. Em segundo lugar, ela nos provoca a enxergar as belezas e angústias do caminho em vez de focar exclusivamente no resultado final. Amanda Palmer, Jout Jout e tantos outros influenciadores ganharam notoriedade, dentre outros motivos, pelo fato de conseguirem perceber e comunicar não só as grandes, mas especialmente as pequenas aventuras de suas vidas. Hoje em dia, pessoas influenciam mais do que marcas, e isso ocorre justamente porque desejamos nos conectar com gente como a gente. O mito do herói que tudo enfrenta e a tudo resiste ruiu: ser autêntico significa ser vulnerável, mostrar seu lado mais humano.
Do ponto de vista profissional, outro motivo para justificar a crescente importância da autenticidade pode ser sintetizado a partir de uma frase do autor americano Jeff Goins: “o valor de um trabalho inconfundível faz a competição se tornar irrelevante”. Em seu podcast, Jeff entrevistou Srinivas Rao, criador do projeto The Unmistakable Creative (O Criativo Inconfundível, em tradução livre). O conceito por trás da iniciativa busca estimular a produção de trabalhos tão autênticos que eles são imediatamente reconhecidos como criações daquela pessoa que o produziu. De algum modo, Steve Jobs fazia isso na Apple. Seu mantra, baseado em surpreender os usuários criando produtos que eles nem sabiam que precisavam, é uma característica que posicionou sua empresa um passo à frente da concorrência — ou melhor, a situou em um lugar que nenhuma outra sequer poderia estar. Criar trabalhos inconfundíveis significa colocarmos nossa impressão digital em tudo que fazemos.
Por que às vezes isso é difícil? Primeiro, precisamos saber qual é nossa digital. O mundo em que vivemos não colabora para que isso aconteça. Nos últimos séculos, vivemos a era da padronização, não apenas de produtos, mas também do pensamento e da imaginação. A massificação do consumo, a escolarização tradicional, a ciência rígida e mecanicista e a polarização de visões de mundo são alguns dos fatores que contribuem para isso. Fomos ensinados a reprimir nossa autenticidade. Muitos de nós sofremos ataques, ainda na infância, sempre que arriscávamos ser um pouco mais espontâneos. Ser inconfundível é um risco quando a cultura é padronizada.
A padronização faz com que nossa capacidade de imaginar novos caminhos fique atrofiada. Srinivas Rao, em sua conversa com Jeff Goins, afirma que se a visão que temos a respeito do que é possível é muito estreita, então por consequência qualquer trabalho que fizermos também será. Resgatar o ser autêntico dentro de nós, aquele que sabe como ousar e surpreender, parece custoso demais em um mundo que a princípio suspeita quando vê caminhos desviantes. Até que as pessoas deixem de nos ver como desajustados e comecem a nos enxergar como inovadores leva algum tempo. Até para nós mesmos essa mudança de chave não ocorre de uma hora para outra. Trata-se de um resgate, ou melhor, de uma reconstrução de identidade.
A internet, especialmente depois do surgimento das plataformas de blogs e das mídias sociais, favoreceu essa reconstrução de identidade para muitas pessoas. De repente, uma pessoa podia começar a escrever em um blog e isso era um meio para ela (re)encontrar sua voz. O meio digital lhe conferia a possibilidade de interagir com gente fora de seus círculos mais próximos, que talvez nunca tenham realmente compreendido o que ela tinha a dizer. Ao mesmo tempo, a internet é o lar do imediatismo e de muitas frustrações e projetos interrompidos. Um cemitério de ideias geniais, inacabadas. É mais fácil do que nunca iniciar a materialização de uma ideia hoje graças ao mundo digital. E não é tão difícil conseguir curtidas e visualizações, já que muitas pessoas estão viciadas em mídias sociais. Vivemos um momento de aplauso instantâneo e de muitas distrações, e isso torna vários de nossos projetos efêmeros.
Srinivas Rao diz que “quando é tão fácil começar, o valor do comprometimento aumenta significativamente”. E isso tem tudo a ver com autenticidade porque, como dissemos, existe uma distância entre ser percebido como autêntico e, antes disso, ser taxado como mais um que está tentando implementar uma ideia maluca. Criar um trabalho e uma vida inconfundíveis, isto é, que de fato espelhem nossos valores pessoais, requer persistência e compromisso. Nossa impressão digital precisa ser revelada a partir dos escombros de julgamentos, frustrações e indisciplinas. Autenticidade é como descascar uma cebola: são várias camadas que precisam ser retiradas para revelar o que há dentro.
Este é um trecho do livro Core Skills que lançarei este ano junto com Alexandre Santille, Conrado Schlochauer e Tonia Casarin pela Teya.
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Para saber mais sobre o Alex, acesse o site dele: www.alexbretas.com.