Os 4 Impulsos da Aprendizagem Autodirigida

Alex Bretas
7 min readFeb 15, 2022

Pouca gente no Brasil sabe, mas existe uma Aliança Internacional pela Educação Autodirigida — a ASDE. Foi lá que eu apresentei a versão em inglês do meu livro Crenças Escolarizantes em janeiro.

Embora o foco do trabalho da Aliança sejam as crianças, as lições que podemos extrair do conhecimento produzido por essa organização abarcam todos os seres humanos, não importa a idade ou o contexto.

É por isso que eu resolvi traduzir um dos artigos que considero mais importantes da ASDE. O título original é The Four Educative Drives (Os 4 Impulsos Educativos), e a versão em inglês pode ser acessada aqui.

Abaixo, a versão traduzida:

Os 4 Impulsos Educativos

Humanos evoluíram para educar a si mesmos — não para sentar em fileiras.

As crianças, por natureza, são intensamente curiosas, brincalhonas e sociáveis desde o nascimento ou logo depois. Um quarto impulso, que podemos chamar de intencionalidade ou planejamento — o impulso de pensar sobre e fazer planos para o futuro — surge nos primeiros meses e se fortalece à medida que as crianças crescem. É razoável referir-se a esses elementos como impulsos educativos. Os fundamentos biológicos desses impulsos foram moldados pela seleção natural, ao longo da nossa história evolutiva, para servir ao propósito da educação e do desenvolvimento integral do ser humano.

As escolas convencionais e coercitivas suprimem deliberadamente esses impulsos, especialmente os três primeiros, no interesse de promover conformidade, mantendo as crianças presas ao currículo escolar. A educação autodirigida, em oposição a isso, opera permitindo que esses impulsos naturais floresçam. Aqui vão algumas reflexões sobre cada um desses impulsos e como eles interagem uns com os outros para promover a educação.

Curiosidade

Nascemos curiosos, e a maioria de nós continuará experimentando mudanças cerebrais até a data de sua morte. Poucas horas após o nascimento, bebês já começam a olhar por mais tempo para objetos novos do que para aqueles que já viram. Em poucos meses, eles são capazes de reconhecer padrões, resolver problemas e fazer conexões de causa e efeito sobre como o mundo ao seu redor funciona.

Uma vez que adquirem mobilidade, eles expandem seus esforços e começam a explorar áreas cada vez maiores em seu ambiente. Eles querem entender o mundo ao seu redor e as conexões entre os objetos que fazem parte desse mundo. Eles querem saber, particularmente, o que podem fazer com esses objetos. Eles mergulham continuamente em suas próprias aventuras, sempre explorando, experimentando e coletando informações. Uma vez que aprendem a linguagem oral, fazem perguntas sem fim. Eles investigam, brincam e argumentam de maneira convincente, às vezes utilizando táticas que observaram um irmão ou amigo usando e obtendo sucesso.

As crianças são, por natureza, cientistas. Tal curiosidade e desejo de se envolver com o mundo como um participante pleno e autônomo não diminuem à medida que as crianças crescem, a menos que o processo de escolarização ou a interferência de adultos escolarizados os anulem. Ao ser encarado como uma dádiva e não suprimido como um incômodo, o impulso da curiosidade com o qual todos nós nascemos continua a se desenvolver, motivando modos cada vez mais sofisticados de exploração e experimentação à medida que crescemos.

Brincadeira

O impulso de brincar serve a propósitos educativos de maneira complementar à curiosidade. Enquanto a curiosidade motiva as crianças a buscar novos conhecimentos e compreensões, a brincadeira as motiva a praticar novas habilidades e usá-las de forma criativa. Crianças em todos os lugares do mundo, quando são livres para fazê-lo e têm muitos colegas e amigos, passam uma quantidade de tempo enorme brincando. Elas brincam para se divertir, e não deliberadamente para se educar, mas o desenvolvimento é o efeito colateral do impulso de brincar ao longo da nossa evolução.

Elas brincam utilizando toda a gama de habilidades que serão cruciais para sua sobrevivência e bem-estar a longo prazo, com um alto nível de envolvimento emocional apoiando a construção de memórias e uma crescente associação entre aprendizagem e prazer, o que por sua vez irá motivar o desejo de continuar buscando novos aprendizados.

  • Elas participam de brincadeiras físicas enquanto escalam, perseguem e dão cambalhotas, e é assim que desenvolvem corpos fortes e movimentos graciosos.
  • Elas participam de brincadeiras arriscadas, e é assim que aprendem a administrar o medo e a desenvolver coragem.
  • Elas brincam com a linguagem, e é assim que se tornam competentes ao manipularem diferentes formas de expressão linguísticas.
  • Elas brincam socialmente, com outras crianças, e é assim que aprendem a se comunicar, se comprometer e a se dar bem com os colegas.
  • Elas brincam e jogam com regras implícitas ou explícitas, e é assim que aprendem a navegar e negociar acordos e regras.
  • Elas brincam de jogos imaginativos, e é assim que aprendem a pensar hipoteticamente e criativamente em colaboração com os outros.
  • Elas brincam com a lógica, e é assim que se tornam cada vez mais lógicos.
  • Elas brincam de construir coisas, e é assim que aprendem a construir.
  • Elas brincam com as ferramentas de sua cultura, e é assim que se tornam habilidosas no uso dessas ferramentas.

Brincar não é só um intervalo da educação; é A educação. As crianças aprendem mais e com muito mais alegria brincando do que poderiam aprender em uma sala de aula prescritiva.

Sociabilidade

Nós, humanos, não estamos apenas entre os mamíferos mais curiosos e lúdicos, mas também entre os mais sociais. Nossos filhos vêm ao mundo com uma compreensão instintiva de que sua sobrevivência e bem-estar dependem de sua capacidade de se conectar e aprender com outras pessoas. Assim que se tornam capazes de se comunicar através da linguagem verbal, as crianças começam a contar histórias e a fazer perguntas. Mesmo as crianças que não sabem usar palavras encontram outras maneiras de indagar sobre o mundo.

Crianças e jovens — e a maioria das pessoas — não querem ouvir falar de coisas que não as interessam, mas, com o devido espaço e validação da sua curiosidade, elas quase exigem que lhes contem sobre as coisas que as interessam, tanto pela conexão social que é gerada quanto pelo acesso à informação em si. Todos os humanos, e em especial os mais jovens, têm o desejo de acessar os saberes dos outros que os rodeiam e também de compartilhar seus próprios pensamentos e conhecimentos com os outros. Antropólogos relatam que crianças em todos os lugares do mundo aprendem mais observando e ouvindo as pessoas ao seu redor do que por qualquer outro método.

Nossa adaptação mais singular para a vida social — que aumenta tremendamente nossa capacidade de aprender uns com os outros — é a linguagem verbal e escrita. A capacidade de usar a linguagem para desenvolver ficções sociais e nos organizarmos a partir delas, uma habilidade desenvolvida através da brincadeira que levou a criações desde o futebol até a bolsas de valores, é sem dúvida a característica definidora da nossa espécie.

Como o filósofo Daniel Dennett escreveu em um capítulo sobre linguagem e inteligência: “comparar nossos cérebros com cérebros de pássaros ou de golfinhos é quase irrelevante porque nossos cérebros estão de fato unidos em um único sistema cognitivo que ofusca todos os outros. Eles são unidos por uma inovação que invadiu somente nossos cérebros e nenhum outro: a linguagem”.

Aprendizes autodirigidos ávida e naturalmente se plugam a essa rede. E hoje, por causa da internet, esse sistema cognitivo é maior do que nunca. Os jovens com acesso à internet precisam se desenvolver em novos formatos, mas isso lhes dá acesso a mundos inteiros de hipóteses, ideias e informações que antes estariam inacessíveis ou codificadas no catálogo da biblioteca local. Com boa parte do mundo ao alcance dos dedos, jovens autodirigidos que sabem buscar novas informações, conexão com comunidades e novas oportunidades têm acesso a uma abundância sem precedentes, disponível na proporção da velocidade de suas conexões à internet.

Intencionalidade/planejamento

Nós, muito mais do que qualquer outra espécie, temos a capacidade de pensar no futuro. Na verdade, somos configurados para fazê-lo. Não reagimos apenas às condições imediatas; fazemos planos e seguimos esses planos. Esse é o nosso impulso educativo mais consciente e cognitivo, e ele se desenvolve mais lentamente que os outros. À medida que as crianças crescem, elas se tornam cada vez mais capazes e motivadas a planejar com antecedência — e cada vez mais à frente. Esse é o impulso que leva aprendizes autodirigidos a pensar sobre seus objetivos de vida, grandes e pequenos, e a buscar deliberadamente os conhecimentos e as habilidades necessárias para atingir esses objetivos.

Cientistas cognitivos referem-se a essa capacidade de fazer planos e executá-los como funcionamento executivo autodirigido. Pesquisas feitas por esses cientistas mostraram que crianças que possuem bastante tempo livre para brincar e explorar, sozinhas e com outras crianças, e sem interferência adulta, desenvolvem essa capacidade mais plenamente do que crianças que passam mais tempo em atividades direcionadas por adultos. Isso não é uma surpresa. Quando as crianças criam suas próprias atividades sem o controle dos adultos, elas estão praticando continuamente a capacidade de fazer planos e de realizá-los. Elas cometem erros, mas elas aprendem com esses erros.

Obs. 1: não custa lembrar, mas os quatro impulsos educativos das crianças — curiosidade, brincadeira, sociabilidade e intencionalidade/planejamento — continuam valendo quando nos tornamos adultos. A curiosidade pode se tornar mais profunda, sistemática e rigorosa, a brincadeira se funde com a leveza, o humor e o prazer de criar, a sociabilidade permanece com a nossa busca por conexões significativas e a intencionalidade/planejamento nos ajuda a projetar novas e melhores realidades para nós mesmos, para os outros e para o mundo.

Obs. 2: muito do pensamento contido no texto é de autoria do psicólogo evolucionista americano Peter Gray, um dos fundadores da ASDE. (Ainda quero muito traduzir os livros dele!)

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Alex Bretas

Alex Bretas é escritor, palestrante e fundador do Mol, a maior comunidade de aprendizagem autodirigida do Brasil. Saiba mais em www.alexbretas.com.