Construindo uma universidade livre: uma experiência japonesa (parte 1)
A jornada rumo à consolidação de uma universidade livre continua. Estive na Finlândia para participar da IDEC@EUDEC 2016 e conheci mais a fundo um dos projetos mais inspiradores neste sentido: a Universidade Shure, no Japão.
Por Alex Bretas
Continuo interessado em entender melhor como a aprendizagem livre pode ser aplicada no contexto de vida de jovens e adultos. No UnCollege Desaprender, estamos experimentando como uma comunidade de aprendizagem autônoma e radicalmente inclusiva pode contribuir para impulsionar os percursos de 18 pessoas que escolheram o caminho da autoeducação. Para continuarmos sustentando essa experiência, lançamos uma campanha de financiamento coletivo. Convido você a conhecer nosso projeto e, se fizer sentido, apoiar e compartilhar o link com seus amigos.
Qual não foi minha surpresa ao constatar que, no Japão, uma experiência semelhante ao Desaprender começou há mais de 15 anos por iniciativa de um grupo de jovens insatisfeitos com a rigidez da educação superior japonesa. Trata-se da Universidade Shure, sediada em Tóquio, que se estrutura a partir da ideia de universidade democrática, onde os estudantes têm liberdade de aprender o que quiserem e o principal foco é o autoconhecimento.
Tive a oportunidade de conhecer e entrevistar Kageki Asakura — um dos criadores da Universidade Shure — na IDEC@EUDEC 2016, uma conferência internacional que reúne todo ano pessoas que empreendem projetos de educação democrática ao redor do globo.
Não há muitas informações disponíveis em inglês sobre a Universidade Shure na internet, e talvez nenhuma em português. Por isso, resolvi postar a entrevista na íntegra aqui, em partes.
Esta é a primeira parte. Acesse as outras nos links abaixo:
Alex: Existem várias coisas que eu gostaria de saber mais sobre você e a Universidade Shure. Em primeiro lugar, quero te perguntar sobre um conceito. Você poderia me dizer qual é sua visão sobre aprendizagem? O que essa palavra significa para você? Como esse significado afeta seu trabalho?
Kageki: Há duas coisas que compõem a aprendizagem para mim: primeiro, me conhecer, saber quem sou eu. Descobrir quem eu sou é uma grande motivação para que eu aprenda. Aprender significa para mim, primeiramente, saber quem sou eu. Assim, ao aprender, eu começo a descobrir muitas coisas sobre mim mesmo. A segunda coisa que compõe o aprendizado é criar minha própria compreensão sobre o mundo e a sociedade. É importante ter em mente que não se trata do entendimento de alguém, e sim do meu entendimento único a respeito da minha comunidade, sociedade, do mundo que me cerca e do território onde vivo.
Alex: Incorporando esse entendimento a respeito da aprendizagem, você poderia me contar como a história da Universidade Shure começou e como foi o seu envolvimento nisso?
Kageki: Desde 1992, eu trabalhava como professor de Ensino Médio na escola democrática Tóquio Shure. Os estudantes tinham ampla liberdade para aprenderem, mas quando eles se formavam e saíam da escola, se eles quisessem continuar estudando eles precisavam ir para outro lugar, talvez faculdades ou universidades.
No entanto, no Japão infelizmente as universidades não são apropriadas para que os estudantes formados em escolas democráticas estudem. Em primeiro lugar, para entrar nas universidades, eles precisam ser aprovados em provas muito competitivas. Para você ter uma ideia, muitos estudantes fora das escolas democráticas se preparam para essas provas durante 9 ou 10 anos. Muitos deles começam com 8 ou 9 anos a frequentar escolas preparatórias para o vestibular depois do período regular da escola. No Japão esses lugares são chamados escolas “cram”. Eles memorizam toneladas de conhecimento apenas para se preparar para as provas que terão de enfrentar anos depois. Ou seja: desde muito cedo eles estão lá memorizando, memorizando, então é realmente muito competitivo. Contudo, os estudantes das escolas democráticas não entendem a razão disso. É perda de tempo para eles. O que acontece é que depois do vestibular esses jovens esquecem tudo que eles “aprenderam”, pelo simples fato de que isso não é necessário em suas vidas. É um esforço sem sentido. Assim, quem frequenta uma escola democrática geralmente não quer ter que prestar um exame tão competitivo e rígido.
Mesmo depois de passar no vestibular, muitos estudantes universitários japoneses continuam se concentrando apenas em se preparar para conseguir um emprego. Vários deles buscam a todo custo conseguir boas notas em testes como o TOEFL e o TOEIC [testes de proficiência em inglês], porque esses exames são uma boa preparação para conseguir uma vaga de trabalho. Desse modo, para quem estudou numa escola democrática, as universidades tradicionais não são um lugar tão interessante.
Além disso, nas universidades japonesas a estrutura costuma ser muito hierárquica. O professor é quem decide tudo: “no meu seminário, vocês precisarão ler este livro que eu escolhi” e coisas desse tipo são comuns.
Dessa forma, em 1998 um grupo de jovens se reuniu para começar a pensar numa alternativa. Mais da metade deles haviam se formado na Tóquio Shure, e a outra metade estudara em outras escolas democráticas ou haviam sido desescolarizados pelos seus pais. Esse grupo e eu começamos um comitê com o objetivo de criar uma universidade democrática. Todos queriam um lugar configurado para a educação livre num patamar de universidade, mas não existia um lugar assim. Por isso nós decidimos criá-lo. No começo nós tivemos longas discussões: em quais dias iríamos abrir, quanto custaria para se estudar nessa universidade, como seria o orçamento etc. Depois de conversar muito, no final de 1999 abrimos a Universidade Shure. No início nós tínhamos apenas duas salas e seis estudantes. Foi assim que começamos esse processo.
Alex: Entendi. E como sua história de vida antes de começar a lecionar se conecta com tudo isso? Como foi sua vida de estudante?
Kageki: Minha família se mudava muito. Troquei de escola quatro vezes porque minha família se mudou de Osaka para Tóquio. Mudar de escola tão frequentemente foi uma experiência bastante difícil para mim. Em dado momento eu comecei a perceber que sempre que o ambiente mudava eu me esforçava para me encaixar no novo ambiente. Isso é muito complicado. Com o tempo eu comecei a encarar isso de maneira diferente e parei de tentar sempre me encaixar. É claro que o ambiente importa, eu respeito isso, mas o que percebi foi que meus colegas não esperavam que eu mudasse meu modo de ser.
Naquele momento eu parei de fazer esforços para me enquadrar e comecei a pensar: o que é realmente importante para mim? Essa foi a pergunta que me moveu no início. Cada vez mais eu entendia que precisava conhecer a mim mesmo mais a fundo. Assim, a questão passou a ser: quem sou eu? Acho essa pergunta muito boa porque, na minha trajetória, ela me trouxe muitas coisas importantes. Por exemplo, eu pude descobrir mais sobre meus interesses. Isso é fundamental.
Outra descoberta que fiz foi quando eu era aluno dos primeiros anos do Ensino Médio. Eu adorava história e, ao aprofundar meus estudos nessa disciplina, comecei a pensar: minhas visões, meus valores sobre a sociedade e o mundo são afetados pelos valores da cultura em que estou inserido. Assim, comecei a perceber a importância de saber a história por trás dos valores das pessoas, ou como esses valores mudam ao longo do tempo. Ao conhecer mais sobre isso, foi mais fácil para mim entender o que eu mesmo valorizo, saber quem eu sou.
Em breve postarei as demais partes da entrevista aqui. Se você gostou do que leu, te convido a apoiar o Desaprender no Catarse. Significa muito pra nós e as recompensas estão incríveis!