Uma perspectiva contra-hegemônica sobre aprendizagem ao longo da vida
Aprendizagem ao longo da vida (lifelong learning) está na moda. Não é muito fácil nadar contra essa corrente, afinal, quem poderia facilmente elaborar argumentos para desqualificar a máxima “você deve aprender a vida toda, não só na escola?” Que fique claro: sou um apaixonado por aprender. Acredito piamente na importância de construirmos trajetórias de aprendizagem dos 0 aos 150 anos. Na verdade, fazemos isso pelo simples fato de existirmos. Mas não consigo conter as palavras quando leio textos como o que segue abaixo, de autoria de Carlos Souza, da Udacity.
O que me incomoda
A primeira frase do texto diz:
Se não adquirirmos as habilidades necessárias para sobrevivermos no mercado de trabalho, o avanço tecnológico nos tornará obsoletos.
Todo o texto segue nesse tom de ameaça, uma espécie de intimidação difusa que nos constrange a aprender desesperadamente porque senão seremos engolidos pelos deuses do mercado e da tecnologia. No mundo adulto, não há mais escolarização obrigatória, mas há as empresas e demais organizações — que continuam a inculcar nos funcionários ou “colaboradores” não apenas programas de educação corporativa impostos, como também toda uma mentalidade escolarizada e escolarizante.
Hoje em dia, no entanto, cada vez mais a responsabilidade por aprender está sendo debitada na conta do indivíduo. É ele quem deve tomar a iniciativa, correr atrás, aprender por conta própria. Se ele não faz isso, fica de fora, é excluído do sistema (dá zero pra ele). Percebe como isso faz parte do mesmo guarda-roupa da educação tradicional que já conhecemos? Há mais de 40 anos, Ivan Illich já nos alertava que as sociedades ocidentais caminhavam no sentido de reproduzir os padrões e normas da instituição escolar, compostas por notas, homogeneização, verdade única, obrigatoriedades, disciplinamento. A aprendizagem ao longo da vida, quando vista restritamente sob óticas como a do dever e da competição mercadológica, nada mais é do que um reflexo modernoso da escolarização da sociedade.
Michel Foucault é outro que, ao denunciar as porosidades dos jogos de poder, esbarra forte na educação — e, mais recentemente, na necessidade sufocante do lifelong learning. Julio Groppa Aquino, professor da Faculdade de Educação da USP, utiliza o pensamento de Foucault para delimitar o chamado “jogo do expert”:
Na esfera educacional, o jogo do expert dar-se-á especialmente por meio de um incansável trabalho de inculcação de ideais transcendentes que, repetidos à exaustão, se reduzirão a slogans do tipo: o dever/direito de desenvolver-se; a construção de uma vida melhor; o aprender a aprender etc. Slogans de vocação empreendedorística que a todos abarcariam, remetendo as existências escolares a um (auto)patrulhamento eterno e, por extensão, a um endividamento mais que voluntário: autoimpingido, autogerido e retroalimentador.
Ainda que o autor esteja se referindo especificamente à situação dos docentes, o jogo do expert é precisamente o que acontece quando nos culpamos por não concluir aquele MOOC sobre liderança no século XXI, por exemplo. Ou por nos sentirmos mal quando não lemos o livro do Eckhart Tolle até o fim. É como se nos tornássemos sentinelas de nós mesmos em relação à nossa aprendizagem. Nunca está bom, nunca é o bastante, estamos sempre em dívida. A grama da educação do vizinho — quer seja o seu perfil no LinkedIn ou a quantidade de livros lidos no Goodreads — é sempre mais verde.
Remando em outra direção
O mais interessante, contudo, é o alívio que o próprio Foucault nos aponta: sempre onde há poder (isto é, tentativas de governar pessoas, mesmo que autoinfligidas), há resistência. Quando decidimos não completar um curso porque ele é extremamente chato ou resolvemos aprender algo de forma não usual — ou mesmo não aprender nada, afinal a vida não é um curso — , estamos criando estratégias de resistência ao jogo do expert. Quando optamos por mergulhar em algo que desejamos profundamente, isto é, quando escolhemos responder à pergunta “O que eu realmente quero aprender?” em vez de “O que eu deveria estar aprendendo?”, estamos resistindo.
Minha mãe, por exemplo, está se redescobrindo no crochê. Depois de anos e anos trabalhando incessantemente como professora de matemática, ela agora se aposentou e começou a bordar. É impressionante como o encantamento dela pelo bordado aumenta cada dia mais. Ela me envia fotos de cada trabalho finalizado e é nítido perceber a evolução dela nessa atividade. O crochê tem ajudado minha mãe a fazer novas amizades e a ressignificar sua vida depois de décadas de uma ocupação exaustiva. Os panos que ela produz não são para vender e o ato de bordar não é uma atividade rentável para ela. Minha mãe é um caso típico de alguém que, sim, está aprendendo ao longo da vida, mas não sob uma perspectiva voltada para a “empregabilidade” ou “educabilidade”, e sim a partir de sua motivação intrínseca. O bordado, para ela, é uma atividade autotélica.
Autotélico: que não apresenta qualquer finalidade ou objetivo fora ou para além de si mesmo.
A aprendizagem que acredito que pode mudar o mundo é de dentro para fora, e não de fora para dentro. É baseada no querer e não no dever. Óbvio que às vezes nos esforçamos para aprender algo não só porque desejamos e sim porque consideramos importante, mas o meu ponto é que isso não deveria ser a regra. Não deveria ser como se lê no texto de Carlos Souza:
Para nos mantermos competitivos, à frente do avanço tecnológico, precisamos aprender continuamente — modalidade de ensino chamada de aprendizagem contínua ou lifelong learning.
A vida não é só sobre aprender. E aprender, no universo adulto, não é só sobre trabalho. Quando é sobre trabalho, não é só sobre “as habilidades do novo milênio” (o que quer que isso signifique). O propósito de aprender não deveria ser competir ou se comparar com os outros.
Referências
Pedagogização do pedagógico: sobre o jogo do expert no governamento docente. Julio Groppa Aquino. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/12941/9451.
Em um próximo post, falarei sobre as três características citadas no texto “Lifelong Learning: para todos ou para poucos?” capazes de potencializar a aprendizagem ao longo da vida: growth mindset/atitude mental progressiva, garra/perseverança e disciplina. Será mesmo que precisamos desenvolvê-las?
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