Cultura de aprendizagem: como as organizações podem resgatar a capacidade inata das pessoas de aprender
Esta semana, a nōvi iniciou um grupo de estudos sobre cultura de aprendizagem nas organizações. Estamos prototipando o formato com a gente mesmo em um primeiro momento, buscando entender como aprofundar a conversa sobre esse tema a partir de estudos e práticas já existentes.
Trata-se de um assunto novo que, em certos aspectos, colide frontalmente com algumas crenças arraigadas no universo dos treinamentos corporativos.
Se você tem uma cultura que “respira” aprendizado o tempo todo, será que é preciso parar o trabalho para treinar os funcionários?
A resposta não é tão simples quanto parece. Tracey Waters, diretora da área de pessoas da Sky no Reino Unido, afirma que existem 4 Rs que sintetizam os benefícios percebidos pelo participante de um treinamento:
- Relacionamentos: o valor de conhecer e se conectar com outras pessoas da organização as quais, de outra forma, talvez ele não conhecesse.
- Recuperação: o valor de sair da sua mesa de trabalho e fazer algo diferente e potencialmente mais prazeroso, ainda que por um breve momento.
- Reconhecimento: o valor de completar um curso e obter um certificado, tornando-se mais reconhecido perante seus pares e pela organização.
- Recompensa: o valor de ter sido um dos “escolhidos” para o treinamento, fazendo o participante se sentir especial e recompensado pelo trabalho que realiza.
Desde a primeira vez que me deparei com essa teoria, constatei que o elemento “treinamento” é muito mais complexo que eu imaginava. Se os treinamentos com frequência não entregam o aprendizado esperado, por outro lado eles talvez atendam outras necessidades das pessoas.
Além disso, caso a empresa não crie ações de treinamento em uma perspectiva mais tradicional, há o risco de as pessoas entenderem que a empresa “não investe em seu desenvolvimento”, uma vez que, na cabeça de muita gente, educação é sinônimo de curso e sala de aula.
“Se não tem uma seta enorme dizendo ‘ISSO É UM CURSO!’, então não se aprende”. (Conrado Schlochauer)
Como cuidar das necessidades apontadas pelos 4 Rs e, ao mesmo tempo, enviar uma mensagem contundente que diz “aqui o seu aprendizado importa”? E, mais complexo ainda, como fazer isso sem depender exclusivamente de treinamentos?
O trabalho de construção de uma cultura de aprendizagem sólida é semelhante ao trabalho de um escultor. É preciso “revelar a obra” que há dentro do bloco de mármore, ou seja, é necessário desbloquear o potencial de aprendizagem que já existe nas pessoas e nas relações tecidas dentro da organização.
Aprender é algo natural do ser humano — dos seres vivos, na verdade. A diferença é que o ser humano consegue, além de se adaptar continuamente aos contextos, criar novos. Desenvolver capacidades de aprendizagem contínua e autodirigida, tornar-se protagonista da própria educação, tudo isso é um resgate. Precisamos resgatar a paixão por aprender a partir da curiosidade, habilidade que praticamente todos os bebês do planeta possuem.
Para revelar a obra de arte a partir do bloco de mármore, o escultor retira os excessos. No que se refere à cultura de aprendizagem, os excessos são as condições que impedem ou dificultam a manifestação das duas modalidades de aprendizagem autodirigida existentes:
- Aprendizagem autodirigida individual: quando, diante de um problema, desafio, oportunidade ou interesse, criamos movimentos e jornadas para aprofundar saberes e/ou criar novos projetos.
- Aprendizagem autodirigida social: quando aproveitamos o fato de estarmos conectados a diferentes redes de pessoas para beber de suas experiências, visões, conhecimentos e curadorias; e também quando criamos intencionalmente ações coletivas — encontros, grupos, comunidades — com o objetivo de aprender.
Obs.: naturalmente, as duas modalidades se entremeiam o tempo todo.
Existem vários fatores — os excessos — que concorrem para que essas aprendizagens não aconteçam. Reflita por um momento: por que as pessoas da sua organização ou de organizações com as quais você trabalha ainda não tomaram para si a condução dos próprios processos de aprendizado?
Certa vez ouvi o Murilo Gun dizer em uma palestra para funcionários de uma empresa: “minha nossa, vocês têm um departamento inteiro cuidando do desenvolvimento de vocês!? Que luxo!”
O ponto é que, com alguma frequência, quanto mais o outro nos entrega coisas prontas, menos ficamos com vontade de fazer. A autonomia precisa de liberdade para se revelar. O “luxo” a que o Murilo se refere, embora tenha sua utilidade, acabou viciando muitas pessoas em uma educação bancária.
Como já escrevi em outro post, vejo que as principais condições de bloqueio do aprendizado nas organizações são:
- Falta de autonomia para resolver desafios, identificar oportunidades de melhoria e/ou buscar os próprios interesses (às vezes a pessoa nem sabe o que a interessa de fato depois de tanto tempo sendo moldado pelos interesses e expectativas dos outros)
- Falta de tempo reservado na agenda para aprender (porque tudo é pra ontem e é uma reunião atrás da outra)
- Falta de conexão entre pessoas e áreas (talvez alguém da empresa que eu nem conheça já tenha passado por um desafio parecido, mas se eu não sei que ela existe, então é impossível acessá-la)
- Insegurança psicológica (aprender tem a ver com se vulnerabilizar, e se esse tipo de interação não está disponível, a aprendizagem social fica debilitada)
- Supervalorização da conformidade (que cria “autômatos” excelentes em reproduzir o que se espera deles, mas péssimos em entrar em contato com suas próprias áreas de força e crescimento)
- Supervalorização do sucesso (que nos deixa ansiosos para bater as metas e nos faz “varrer para debaixo do tapete” os fracassos, retirando-nos a oportunidade de encará-los de frente e aprender com eles junto de outras pessoas)
As áreas de aprendizagem e desenvolvimento das organizações precisam atuar mitigando esses fatores o tempo todo. Treinamentos são uma estratégia, mas nem de longe podem ser a única.
Se a cultura organizacional não refletir os valores da aprendizagem contínua e autodirigida — o que, como vimos, não é o mesmo que aprendizagem solitária — , mesmo as pessoas de mentalidade mais protagonista em relação ao próprio aprendizado não vão conseguir dar vazão a essa capacidade.
Pior: elas irão sair da organização em busca de outras oportunidades profissionais que alimentem aquilo que suas almas anseiam.
Apoiar a criação de uma cultura de aprendizagem forte é um desafio imenso. A maioria das pessoas na nossa sociedade foi levada a acreditar, a partir de sua estadia no sistema educacional tradicional, que ter uma educação é igual a ser ensinado (passivamente).
O modelo dominante não abre espaço para que cada pessoa investigue o mundo a partir de suas paixões e descubra/explore suas áreas de excelência. O que o sistema convencional quer é nos padronizar, o que também é uma forma de nos colonizar.
As organizações repetem esse mesmo padrão, mas talvez com ainda mais intensidade, primeiro porque as pessoas já chegam moldadas a partir das crenças de educação que receberam ao longo da vida, e segundo porque há a instalação de novas crenças como “o importante é mostrar resultado”, “vou ser punido se tentar algo novo” e “melhor não perguntar, porque senão todo mundo vai saber que eu não sei”.
Precisamos de mais gente disposta a reverter esse cenário. Disposta a resgatar a capacidade e a vontade de aprender que todo ser humano possui.
O trabalho deveria ser fonte de orgulho e expressão pessoal, uma forma de demonstrar o nosso apreço pelo mundo.
Vamos juntos criar essa realidade?
Referências
- Agile L&D With Tracey Waters. The Learning & Development Podcast. Disponível aqui.
- Demonstrating the Value of an Organization’s Learning Culture: The Dimensions of the Learning Organization Questionnaire. Victoria J. Marsick e Karen E. Watkins. SAGE Journals. Disponível aqui.
- Why Organizations Don’t Learn. Francesca Gino e Bradley Staats. Harvard Business Review. Disponível aqui.