Portal: uma estrutura mínima para apoiar a aprendizagem autodirigida
Um relato do processo, seus resultados e como ele pode ser replicado
Entre setembro a novembro de 2020, criei um pequeno experimento para entender como seria possível apoiar jornadas de aprendizagem autodirigida com o mínimo de estrutura possível.
Nascia ali o Portal, que recebeu 16 aprendizes entre 16 a 67 anos em sua primeira edição. Considerando o sucesso da iniciativa, acredito que o formato pode ser aproveitado em outros contextos. E é isso que este relato busca incentivar.
O que é o Portal e como funciona
No início de setembro, fiz um chamado para a minha rede perguntando quem gostaria de viver uma jornada de aprendizado autodirigido com duração de dois meses. 45 pessoas se inscreveram, mas como o projeto era apenas um protótipo, conduzi um processo seletivo para chegar nas 16 pessoas que de fato participaram.
O programa, totalmente gratuito, buscava testar a seguinte hipótese central: será que, com alguns “empurrãozinhos” de comprometimento e apoio, é possível impulsionar aprendizes autodirigidos no aprofundamento e compartilhamento de suas investigações?
A resposta, pra mim, foi um sonoro sim. Porém, antes de trazer os resultados e reflexões sobre a iniciativa, quero relatar o que ocorreu durante esse período.
Os “empurrãozinhos” do Portal foram os seguintes:
- Inscrição prévia: ao precisarem realizar uma inscrição por meio do preenchimento de um formulário, os participantes já deram um primeiro voto de compromisso no processo (o nome técnico disso é “estratégia de compromisso prévio”, um tipo de nudge).
- Escassez: não era certo que aconteceria, mas, pelo fato de terem havido muitas inscrições, foi necessário adotar critérios de seleção. A escassez, no caso, pode ter tido um efeito positivo na percepção de valor — e, consequentemente, no nível de compromisso — das pessoas em relação ao processo.
- Lembretes: por meio do Whatsapp, enviei três lembretes para cada um dos participantes ao longo dos dois meses do Portal. Ajudar as pessoas a se lembrarem de uma ação que escolheram realizar também é considerado um tipo de nudge.
- Entrega: ao final do percurso, era esperado que os participantes realizassem uma entrega compartilhando as principais descobertas de suas jornadas de aprendizagem. Gosto de pensar no conceito de entrega como um “TCC reimaginado” ou, melhor ainda, como um “transbordamento” de conhecimento. O fato de saberem que o processo lhes pede para fazerem uma entrega contribui para aumentar o poder de sistematização e síntese, dentre outros benefícios.
- Prazo: antes de se inscreverem no Portal, as pessoas já sabiam que haveria um prazo para realizarem suas entregas — no caso, até o dia 18/11, o que equivale a aproximadamente 50 dias de percurso. Um prazo gera a “pressão positiva” necessária para evitar a procrastinação, e o fato dele ser curto ajuda o aprendiz a “recortar” seu aprendizado em partes menores — o que contribui na motivação.
- Apresentação: uma semana depois de realizarem suas entregas, os participantes foram convidados a apresentá-las em um encontro via Zoom. As reuniões tiveram a presença, além dos próprios integrantes do Portal, de pessoas externas que quiseram prestigiar os compartilhamentos. Cada aprendiz teve 8 minutos para apresentar e 5 minutos para ouvir apreciações e comentários dos demais presentes.
- Badge (microcertificado): não estava previsto, mas no final do processo resolvi criar uma badge chamada “Insígnia do Portal” para “condecorar” os participantes que completaram o percurso. A badge é um documento digital que traz as principais informações sobre o que foi feito e as habilidades aprimoradas durante o trajeto.
Desafios ao aprender
Você talvez esteja se perguntando: mas por que isso é necessário?
Qualquer pessoa pode iniciar um processo de aprendizagem autodirigida a qualquer momento, sobre qualquer assunto que lhe interessa.
Sim, é verdade. Ainda assim, nem todos que querem conseguem. Menos ainda são os que, além de iniciar, são capazes de sustentar o percurso com consistência. Por fim, apenas um grupo muito reduzido de pessoas consegue iniciar, sustentar e chegar às etapas de compartilhamento e aplicação do conhecimento gerado, que costumam ser as mais “avançadas” da jornada — entre aspas porque, a depender da pessoa e do percurso, o compartilhar e o aplicar podem vir antes, e isso tende a ser vantajoso.
O principal obstáculo que impede as pessoas de praticar o aprendizado autodirigido é a (falta de) autodisciplina, seguida de perto por alguns outros desafios que apresento abaixo:
Principais desafios ao aprender (resultados de uma pesquisa com mais de 100 respondentes realizada por mim em maio/2020)
>> Ter um foco claro: “Como sou muito curiosa e tudo me interessa em algum grau, meu maior desafio é manter o foco. Acabo ficando com muitas janelas abertas e assim os processos não se completam”
>> Definir como aprender: “[Meu desafio nº 1 é] criar uma estrutura, um plano, planejar meu percurso meu aprendizagem”
>> Fazer uma boa curadoria: “[Meu desafio nº 1 é] buscar e filtrar fontes de informação confiáveis, práticas e interessantes para obter o conteúdo”
>> Criar e sustentar uma rotina de aprendizado: “[Meu desafio nº 1 é] manter uma rotina diária de estudos, pois em muitos dias a demanda de trabalho, família e serviços domésticos consomem muito minha energia. Embora eu utilize algumas madrugadas para estudar” [total a ver com autodisciplina]
>> Sistematizar e sintetizar informações: “[Meu desafio nº 1 é] sistematizar as ideias, conceitos e habilidades principais da situação a ser aprendida e sintetizar todo esse conhecimento de uma forma simples”
>> Compartilhar o que aprendi com o mundo: “É muito difícil pra mim me expor e compartilhar meus aprendizados com outras pessoas”
>> Colocar os aprendizados em prática: “Com certeza meu maior desafio é colocar em prática. Tendo a ficar presa à teoria”
Além disso, vale ressaltar outras duas dificuldades que frequentemente ocorrem entre aprendizes autodirigidos:
- Muitos acham que o caminho é solitário
- Muitos têm receio de não serem reconhecidos (já que não há certificados e diplomas formais em um caminho de aprendizado informal)
Após estudar os desafios acima em centenas de percursos de aprendizagem autodirigida, comecei a desenhar uma estrutura que pudesse fornecer, como se diz nos ALCs, “o máximo de apoio com o mínimo de interferência”.
O Portal, nesse sentido, contribui especialmente para solucionar os seguintes desafios:
- Falta de autodisciplina
- Ausência de um foco claro
- Dificuldade de sistematização e síntese
- Medo de compartilhar
- Receio de não ser reconhecido
Embora não permita a mesma intensidade de trocas, construção de vínculos e pertencimento de uma comunidade de aprendizagem autodirigida, o Portal se mostrou uma estrutura leve e eficaz no que se propõe. E, uma vez que erguer uma verdadeira comunidade requer energia, comprometimento e conhecimentos específicos, essa nova arquitetura pode ser útil quando o contexto não admite um investimento maior de tempo e recursos.
Resultados
Das 16 pessoas que foram selecionadas para o Portal, 12 concluíram suas entregas e apresentaram nos encontros finais, ou seja, 75% do total. Os temas variaram bastante: alguns exemplos são produção de vídeo, exercício físico, filosofia, empreendedorismo, literatura, protagonismo juvenil, educação e facilitação de grupos.
Ao enviar cada lembrete durante os dois meses, eu sempre me colocava à disposição para ouvir os participantes a respeito de suas jornadas. Por conta disso, acabei identificando três perfis principais de aprendizes:
- Aprendiz Autossuficiente: segue conduzindo a própria jornada sem demandar muito apoio. Quando se manifesta, geralmente precisa de ajudas práticas e pontuais.
- Aprendiz Heterodirigido Em Desconstrução: também se coloca para viver o processo, mas deseja obter apoios mais frequentes e profundos. Demonstra insegurança e acha que precisa ser validado com frequência.
- Aprendiz “Não Dou a Mínima”: sabe aquela pessoa que some depois da primeira noite? Pois é. Mesmo tendo feito a inscrição, esse perfil se recusa a responder qualquer tentativa de contato e normalmente não chega a concluir o percurso.
Ainda que as categorias acima sejam apenas didáticas, consegui enxergar com nitidez aprendizes que se aproximavam mais de uma ou mais de outra.
Em novembro, organizei três encontros para os participantes apresentarem suas entregas — a princípio apenas dois estavam programados, mas foi necessário um terceiro para que todos apresentassem com tranquilidade. As apresentações foram o ponto alto do percurso e se distinguiram pela emocionalidade.
Em uma das últimas mensagens que enviei para os aprendizes antes das apresentações, ressaltei o caráter apreciativo, celebrativo e cooperativo que gostaria de cultivar nesses momentos.
Além disso, um dia depois dos compartilhamentos, enviei um áudio de Whatsapp parabenizando e apreciando cada um pela sua dedicação ao processo.
Após o último encontro, pedi aos participantes para preencherem um pequeno formulário de avaliação, que recebeu 10 respostas. Abaixo, compartilho os principais pontos.
30% de melhora nas habilidades de aprendizagem autodirigida
Houve um aumento significativo na capacidade percebida pelos participantes em aprender de maneira autodirigida — média de 6,7 em 10 antes e 9,6 em 10 depois do Portal, ou seja, verificou-se uma alta de aproximadamente 30%.
NPS 100
100% dos participantes recomendariam a experiência do Portal para um amigo sem pensar duas vezes.
Mais oportunidades de troca
Curiosamente, o que mais apareceu quando perguntei sobre pontos de melhoria foi uma demanda por mais interação entre os participantes. Consegui detectar três motivos para isso:
- Conhecer melhor a jornada dos outros aprendizes
- Compartilhar mais o “status” da própria jornada antes da entrega final
- Troca de ideias e criação de vínculos entre o grupo
Algumas respostas, no entanto, enfatizaram que não mudariam nada na experiência, ou seja, o pedido por mais interação não foi unânime.
Depoimentos
Carol Cortinove
Luis Sérgio Ferreira
Entregas
- Pâmella — O resgate emocional pela aprendizagem autodirigida
- Bel — Flor da vida 50+
- Tarik — O que pode a filosofia em comunidade? (sobre o Jardim)
- Adriane — Enquanto costuro fadas
- Davi — Cartas para Sofia
- Luís Sérgio — Descobertas sobre facilitação e design de comunidades de aprendizagem livre
- Julio — Como reduzir dores nas costas treinando em casa
- Rebeca — Autoconhecimento e documentação da Jornada na Era Complexa
- Rosa — O que aprendi na “esquina de 2020"
- Ana Paula — Como aprendi a fazer vídeos didáticos incríveis
- Canela — Narrar histórias para a-cor-dar adultos: astrologia para reencantar o dia-a-dia
- Carol — O que meu corpo pode ensinar sobre meu percurso de aprendizagem?
Todas as entregas acima podem ser acessadas aqui.
Obs.: algumas partes de determinadas entregas não estão no link acima porque os autores optaram por não divulgá-las publicamente.
Reflexões
A partir da experiência que vivemos, percebo que o Portal se provou uma estrutura relevante para apoiar aprendizes autodirigidos em alguns de seus principais desafios. Contudo, pelo fato de ser uma “dose” de estrutura e apoio mínima, talvez ele não seja pra todo mundo.
É importante que o participante acredite e possua um nível de habilidade mínimo em aprendizagem autodirigida antes de iniciar o processo. Caso sua orientação para o aprendizado seja muito heterodirigida — o outro dirigindo o caminho o tempo todo — , é possível que a pessoa abandone a jornada, seja por não acreditar que isso pode dar certo, seja por não ser capaz de se guiar adequadamente (há, aqui, um paralelo com o conceito de emancipação intelectual de Joseph Jacotot).
Uma sequência particularmente interessante seria criar uma comunidade de aprendizagem antes (no molde dos ALCs, por exemplo) e, depois de algum tempo, “abrir” um Portal. Trata-se de algo que pretendo testar em breve.
No MoL, as duas coisas — as trocas dentro da comunidade e as jornadas de aprendizado individuais — ocorreram em paralelo, o que acabou contribuindo para gerar uma sensação de “FOMO” (Fear of Missing Out, ou o Medo de Estar Perdendo Alguma Coisa) nas pessoas. Outra vantagem é que a vivência em uma comunidade de pessoas autodirigidas antes de iniciar uma jornada no Portal contribui na construção de habilidades de aprendizagem autônoma, o que certamente ajudará depois.
Aplicando o Portal em outros contextos
O fato de o Portal ser uma estrutura mínima também ajuda em sua replicação. Penso que não seria difícil “formar” pessoas para criarem iniciativas semelhantes. Na verdade, somente com a leitura deste post já seria possível fazer isso. (ficou com vontade? Faz e depois me conta!)
Qualquer grupo de pessoas que queira ampliar seu comprometimento em aprender de maneira autodirigida pode utilizar o Portal como uma estrutura de apoio nessa missão. Abaixo, listo quatro contextos que podem se beneficiar especialmente com isso:
Empresas e organizações
- Times podem criar Portais autonomamente para potencializar o aprendizado de seus integrantes. A cada Portal, um integrante do time se responsabiliza por facilitar e gerir o processo.
- RHs podem criar Portais e convidar todas as pessoas que trabalham na organização para participar, ou então focar em alguma área específica que esteja precisando melhorar suas capacidades de aprendizado e autodireção.
Escolas
- Professores, integrantes da equipe da escola e até mesmo os próprios alunos podem propor Portais como “projetos interdisciplinares” ao longo do ano. O Varlei Xavier Nogueira fez algo nessa linha com a Jornada C.A.P.E.S.
Universidades
- Coordenadores de curso, membros de Diretórios e Centros Acadêmicos, integrantes do MEJ (Movimento Empresa Júnior) e até mesmo os próprios estudantes podem propor Portais convidando a comunidade acadêmica para participar.
- Professores de determinada disciplina podem criar Portais como uma forma de estimular os alunos a construírem conhecimento de forma autodirigida dentro dos contornos do tema em questão.
Grupos de amigos
- Se você e seus amigos querem potencializar sua capacidade de aprender, seja dentro de um mesmo assunto ou não, é possível abrir um Portal a fim de criar senso de comprometimento e ação.
Não é só sobre autodisciplina
Talvez o aspecto mais evidente da experiência do Portal seja o aumento de autodisciplina e comprometimento que ela é capaz de proporcionar. E é óbvio que isso é importante porque temos muita dificuldade nessas coisas, especialmente quando ninguém está nos mandando aprender.
Contudo, existem outros ganhos mais sutis que são tão importantes quanto. Iniciativas como o Portal ajudam a dar visibilidade às descobertas de aprendizes autodirigidos que, de outra forma, talvez passassem despercebidas. E, como o nível de atenção que alguém recebe está diretamente relacionado ao quanto ele consegue avançar, isso contribui inclusive para acelerar o aprendizado de quem vive o processo.
O aumento de visibilidade de jornadas de aprendizado autônomas também é um elemento crucial para fortalecer o movimento da aprendizagem autodirigida no Brasil e no mundo. Embora várias pessoas já tenham despertado para o valor de conduzir a própria educação, trata-se de um caminho que ainda assusta muita gente. E não há nada melhor para dissolver esse medo que mostrar, na prática, como essa forma de aprender pode ao mesmo tempo ser significativa para o indivíduo e gerar resultados concretos.
Com mais exemplos reais de percursos de aprendizagem autodirigida, mais pessoas ganham coragem para embarcar nessa aventura. E é assim que faremos a roda do lifelong learning girar cada vez mais rápido.
Obs. 1: em 2021, pretendo realizar ao menos mais uma edição do Portal. Pra ficar por dentro de todas as novidades, assine minha lista de e-mails no site www.alexbretas.com.
Obs. 2: caso queira conversar sobre o Portal, meu e-mail é alex@alexbretas.com.