Como não abraçar o mundo com as pernas em comunidades de aprendizagem autodirigida
Há alguns anos, tenho investigado, tanto na teoria como na prática, como criar e sustentar o que chamo de comunidades de aprendizagem autodirigidas.
O conceito pode ser entendido da seguinte forma:
- Comunidade: “lugar” onde as pessoas se conectam profundamente umas com as outras e também a um propósito comum. Fontes de pertencimento, significado e criação de valor individual e coletivo.
- Aprendizagem: seguir o fio da própria curiosidade e “botar pra fora” o conhecimento construído fazendo algo melhor do que antes. Mudar a si mesmo continuamente em uma direção percebida como positiva.
- Autodirigida: conduzir o próprio caminho (de aprendizagem) com autonomia e assumir responsabilidade por ele, enriquecendo a própria vida e a dos outros ao redor. Tomar decisões e agir sem se submeter.
Existem muitas iniciativas educacionais que já operam como comunidades de aprendizagem autodirigida, ainda que não usem esse nome. Cito vários exemplos e proponho uma tipologia desses projetos neste texto.
Além do texto acima, escrevi, também no ano passado, o artigo “Arquiteturas de comunidades de aprendizagem autodirigida”, que mapeia 5 formas diferentes de organização capazes de potencializar a aprendizagem autônoma.
Além de pesquisar e escrever sobre essas comunidades, tenho me envolvido ativamente em algumas delas, ora como iniciador e facilitador, ora como mentor em empresas e organizações e algumas vezes como membro. Minha principal iniciativa nesse sentido atualmente é o MoL — ou Masters of Learning, embora eu não veja mais ninguém utilizando o nome completo por aí (que bom, pois MoL é muito mais legal).
Desde 2020, quando tivemos a primeira turma do MoL, até agora, durante o MoL Academy, um percurso de 7 meses sobre formação de comunidades de aprendizagem autodirigida, eu tenho me feito várias perguntas sobre como cultivar esse tipo de espaço.
“Cultivar”, mesmo, porque comunidades são como jardins e nós, facilitadores, somos os jardineiros.
Uma das perguntas mais vivas pra mim neste momento é como cuidar da sensação de “estar em dívida”, “não conseguir acompanhar” e “estar sem espaço para respirar diante de tantas possibilidades” que tem surgido em vários membros do MoL Academy (além de ser uma formação, o programa também funciona na prática como uma comunidade de aprendizagem autodirigida).
Antes, porém, é preciso entender como isso começou.
Sobreposição (e excesso) de arquiteturas e convites
Lembra das arquiteturas de comunidades de aprendizagem autodirigida? Elas são, como afirmei acima, um conjunto de formas de organização coletiva para potencializar a aprendizagem livre das pessoas.
Faço um breve resumo de cada uma delas abaixo:
- Pedidos e Ofertas: pessoas se organizam para ofertar e pedir ações de aprendizado, participando das ofertas e contribuindo em pedidos umas das outras
- Jornadas Individuais em Comunidade: pessoas criam seus percursos de aprendizagem autodirigida com apoio da comunidade, cada um a partir de seus próprios interesses e necessidades
- Grupos de estudo e/ou prática: pessoas se organizam para aprofundar seu conhecimento e/ou prática em determinado tema ou habilidade de interesse comum
- Sozinho, Junto: pessoas aprendem ou trabalham em algo individual junto a outras que estão fazendo o mesmo com o objetivo de maximizar a motivação de todos (por exemplo, um retiro de escritores)
- Festivais e Desafios: pessoas se reúnem durante um tempo curto para aprender ou evoluir em algo de maneira acelerada, podendo haver o combinado de cumprir ou entregar algum resultado concreto no final
No MoL Academy, a ideia é fornecer oportunidades reais para os membros vivenciarem essas arquiteturas. Foi assim que aprendi a aplicá-las ao longo dos anos.
Começamos com a arquitetura de Pedidos e Ofertas. Mesmo sendo um formato potente e versátil, ele também pode acabar gerando algum nível de frustração nas pessoas, especialmente quando a quantidade de atividades ofertadas é grande — em um ambiente de Pedidos e Ofertas, a agenda é construída pelos próprios participantes, que podem criar suas próprias atividades sobre qualquer tema.
Os pedidos e ofertas foram introduzidos logo na segunda semana do programa, em uma ação que chamei de Festival de Aprendizagem Ágil. Durante essa semana, mais de 40 atividades facilitadas pelos próprios membros foram realizadas em diferentes dias e horários.
Minha escolha por propor a vivência dos pedidos e ofertas através desse formato “intensivo” dialoga com a arquitetura de Festivais e Desafios. Na verdade, o que fiz foi um “mix” das duas.
Depois da semana do Festival, continuamos abrindo uma agenda de pedidos e ofertas, além de várias outras atividades que ocorrem em paralelo (encontros de toda a comunidade, encontros em grupos menores, conteúdos, trocas na nossa plataforma assíncrona, desafios etc).
Tenho observado que, ao propor diversas arquiteturas e possibilidades simultaneamente, muitas pessoas têm tido dificuldade em participar delas. Embora a máxima “tudo é convite” permeie toda nossa prática comunitária — ou seja, nada é obrigatório –, ainda assim várias pessoas relatam que se sentem pressionadas pela quantidade de opções existentes.
Será que, se houvesse menos opções, a experiência seria melhor? Se a sobreposição de arquiteturas está sendo sentida como um “peso”, será que deveríamos retirar algumas delas?
Paradoxo da escolha: um aquário em vez de um oceano?
De certo modo, é possível dizer que o que muitos membros estão vivenciando na comunidade do MoL Academy é o que o psicólogo norte-americano Barry Schwartz define como “paradoxo da escolha”. O TED dele sobre esse assunto, de 2005, é mais atual do que nunca.
Em certo momento de sua fala, Schwartz brinca ao afirmar que muitas pessoas estão indo às lojas de celular e perguntando: “será que vocês têm um celular que faça MENOS coisas?”
É claro que esse excesso de possibilidades não está ocorrendo apenas com os celulares.
Uma certa quantidade de opções costuma ser melhor do que uma possibilidade única. Mas o que o autor afirma é que muitas escolhas acabam diminuindo nosso bem-estar em vez de aumentá-lo, e podem contribuir para nos sentirmos frustrados e até mesmo culpados. Esse é o paradoxo da escolha.
Barry Schwartz termina sua apresentação com a imagem abaixo:
Embora à primeira vista o desenho pareça uma crítica aos gurus de autoajuda — e ele certamente pode ser lido dessa forma –, Schwartz nos oferece uma outra interpretação: se o aquário fosse quebrado, isso não equivaleria a mais liberdade ou satisfação, e sim à paralisia (e provavelmente à morte) dos peixes.
Diante de um “oceano” de possibilidades, talvez nós não saibamos para onde ir. Pior: talvez haja uma redução da nossa satisfação com qualquer escolha que fizermos, uma vez que a comparação e as expectativas serão maiores.
Será que esse fenômeno ocorre em comunidades de aprendizagem autodirigida? Será que isso está ocorrendo neste momento no MoL Academy? Será que o que precisamos é de um aquário em vez de um oceano (ou ao menos de um oceano menor)?
Inspiração: Pedagogia da Alternância
A Pedagogia da Alternância surgiu em 1935 na França rural com a criação das primeiras Maisons Familiales Rurales (Casas Familiares Rurais). Conforme se lê no artigo “Estudos sobre Pedagogia da Alternância no Brasil: revisão de literatura e perspectivas para a pesquisa”, esse sistema de aprendizagem pode ser descrito da seguinte forma:
No ensino organizado por esses agricultores, com o auxílio de um padre católico, alternavam-se tempos em que os jovens permaneciam na escola — que naquele primeiro momento consistia em espaço cedido pela própria paróquia — com tempos em que estes ficavam na propriedade familiar. No tempo na escola, o ensino era coordenado por um técnico agrícola; no tempo na família, os pais se responsabilizavam pelo acompanhamento das atividades dos filhos. A ideia básica era conciliar os estudos com o trabalho na propriedade rural da família.
Pelo pouco que sei sobre a Pedagogia da Alternância, me parece que o método foi criado a partir de uma insatisfação com um sistema educacional cada vez mais urbano, que não considerava as peculiaridades da educação no campo.
Ao intercalar diferentes momentos (que, ao seu modo, são também “arquiteturas”) que privilegiam diferentes nuances do aprendizado em vez de oferecê-los simultaneamente, entendo que o que a Pedagogia da Alternância propõe é que ambos os momentos sejam potencializados.
Ao considerar a questão do “paradoxo de escolha” em comunidades de aprendizagem autodirigida, vejo que esse modelo pode servir de inspiração para pensar soluções.
Mas quais seriam os diferentes momentos a serem alternados?
Alternando arquiteturas dentro de uma comunidade
A ideia para aplicar a alternância em comunidades de aprendizagem autodirigida veio a partir de uma constatação: as diferentes arquiteturas (Pedidos e Ofertas, Jornadas Individuais em Comunidade, Grupos de estudo e/ou prática, Sozinho, Junto e Festivais e Desafios) são todas úteis para fomentar a aprendizagem, mas não se forem aplicadas todas em um mesmo momento.
Pensando nas futuras edições do MoL Academy, um caminho possível seria:
- Começar em um formato semelhante a um grupo de estudos com o objetivo de fornecer uma base de conhecimento dentro das temáticas do programa — no caso, o tema é como criar comunidades de aprendizagem autodirigida. Duração: 2 meses.
- Em seguida, inaugurar um período de pedidos e ofertas, mas com uma agenda restrita aos horários de encontro já previamente definidos pela comunidade (por exemplo: se, na divulgação do programa, foi anunciado que os encontros seriam toda segunda e quarta à noite, manter esses mesmos horários para as atividades da agenda de pedidos e ofertas em vez de abrir para que elas possam acontecer a qualquer momento). Duração: 2 meses.
- Outra ideia ligeiramente diferente é já anunciar antes do programa começar que a agenda de pedidos e ofertas ocorrerá em um ou dois horários predefinidos na semana ou no mês (por exemplo, sempre nos sábados de manhã).
- Por fim, criar espaço para as jornadas individuais, uma vez que a esta altura do campeonato os membros provavelmente já terão várias ideias do que gostariam de investigar e aprender por conta própria. Ao final, um momento para quem quiser compartilhar suas descobertas (portal de entrega) é oferecido. Duração: 3 meses.
Caso o MoL Academy fosse uma comunidade permanente, essas arquiteturas poderiam continuar sendo alternadas ao longo do tempo. Talvez isso ajude as pessoas a não se sentirem sobrecarregadas e culpadas por não estarem dando conta de “se jogar na rede” tão intensamente quanto querem.
Mesmo em ambientes de liberdade (especialmente neles), o design do contexto — e da quantidade de caminhos e opções disponíveis — importa.
A alternância surge como uma das possibilidades de design no sentido de cuidar para que os membros da comunidade não caiam no paradoxo da escolha. Certamente existem outras.
Nós, como Arquitetos de Aprendizagem Autodirigida, precisamos ficar muito atentos para não querer abraçar o mundo com as pernas.